7. Hillel, Shammai e Jesus
Jesus era mais fariseu do que você pensa (e isso não é um xingamento) - Parte 4
Hillel, Shammai e Jesus
Como dito no inicio desse estudo, o conflito entre Jesus e os fariseus é algo recorrente na narrativa dos Evangelhos, mas pouco se lembram da passagem onde Jesus e um escriba concordaram. Esse episódio é chave para a entender a natureza da relação dos fariseus com Jesus:
Quando questionado por um escriba sobre qual seria o maior de todos os mandamentos, Jesus responde: o primeiro mandamento é amar a Deus com com todo coração, toda alma e todas as forças, e o segundo é amar ao próximo como a si mesmo. O escriba concorda com Jesus e recebe um elogio: “Não estás longe do Reino de Deus":
Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido disputar, e sabendo que lhes tinha respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele;E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios. E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada. Marcos 12:28-34
Durante o sermão da montanha Jesus resume toda lei e os profetas com o mandamento de fazer ao próximo o que gostaria que fizessem por você
Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas. - Mateus 7:12
A ideia de que o mandamento de amar ao próximo é um mandamento que resume toda Torá, mais uma vez, não é uma novidade trazida por Jesus.
Rabi Akiva considerava esse o grande principio geral da Torá:
“Ame o seu próximo como a si mesmo” - Rabi Akiva diz: “Este é um grande princípio geral da Torá.” - Sifra, Kedoshim 2:4.12
Mas nada mais representativo do que o episódio registrado no Talmude que ilustra a diferença entre Hillel e Shammai:
Quando um gentio chegou diante de Shammai e, com deboche, disse que se converteria se Shammai conseguisse ensinar toda Torá enquanto estivesse apoiado em apenas um pé, a reação do rabino foi expulsa-lo
Quando chegou o homem diante de Hillel e fez o mesmo desafio, recebeu a resposta antológica "O que é odioso para você, não faças a outro; essa é a Torá inteira, todo o resto é interpretação. Vá e aprenda."
Houve outro incidente envolvendo um gentio que chegou diante de Shammai e disse: Converto-me com a condição de que você me ensine toda a Torá enquanto eu estiver em um pé só. Shammai o empurrou com o cúbito do construtor na mão. Esta era uma medida comum usada na construção e Shammai era um construtor de profissão. O mesmo gentio chegou diante de Hillel. Ele o converteu-o dizendo: "O que te é odioso para você, não faças a outro; essa é a Torá inteira, todo o resto é interpretação. Vá aprender." - Shabbat 31a:6
Ou seja:
Assim como ( parte dos) fariseus, Jesus considerava “amar o seu próximo como a si mesmo” o grande principio geral da Torá e critério para hierarquizar os mandamentos.
Hillel e Shammai eram dois grandes rabinos que viveram pouco antes de Jesus, ambos fundaram escolas de interpretação da Torá. Hillel é tido como alguém bondoso e paciente e Shammai como rígido. Diferenças de interpretação entre os rabinos é algo recorrente na literatura judaica, a começar por esses mestres fundadores: o Talmude registra mais de 300 discordâncias entre Hillel e Shammai.
Normalmente as interpretações de Jesus estavam mais alinhadas as interpretações de Hillel, mas em alguns casos mais próximas de Shammai. Um exemplo é o mandamento sobre a carta de Divórcio detalhado em Deuteronômio 24:
Houve um grande debate entre Hillel e Shammai sobre o que significaria “nela encontrar coisa indecente”. Enquanto Shammai via nisso uma referência ao adultério, Hillel considerava que qualquer coisa que desagradasse ao marido poderia ser considerada como ter “encontrado nela coisa indecente”, portanto poderia se divorciar por qualquer motivo.
Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa. - Deuteronômio 24:1
Jesus parce considerar a “fornicação" o único motivo justificável de repudio:
Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério. - Mateus 19:9
Considerando que junto com o termo “fornicação" Jesus usa o termo “repúdio”, é possível que estivesse se referindo ao capitulo 22 de Deuteronômio, onde é descrito que o homem poderia repudiar a esposa apenas se houvesse “provado”, ao estilo da época, que a mulher não era mais virgem, apresentando a falta de sinais de virgindade da esposa na consumação do casamento.
Quando um homem tomar mulher e, depois de coabitar com ela, a desprezar, E lhe imputar coisas escandalosas, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher, e me cheguei a ela, porém não a achei virgem; Então o pai da moça e sua mãe tomarão os sinais da virgindade da moça, e levá-los-ão aos anciãos da cidade, à porta;E o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a este homem, porém ele a despreza;E eis que lhe imputou coisas escandalosas, dizendo: Não achei virgem a tua filha; porém eis aqui os sinais da virgindade de minha filha. E estenderão a roupa diante dos anciãos da cidade.Então os anciãos da mesma cidade tomarão aquele homem, e o castigarão.E o multarão em cem siclos de prata, e os darão ao pai da moça; porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. E lhe será por mulher, em todos os seus dias não a poderá despedir.Porém se isto for verdadeiro, isto é, que a virgindade não se achou na moça,Então levarão a moça à porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão, até que morra; pois fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai; assim tirarás o mal do meio de ti. Deuteronômio 22:13-21
Note que esse mandamento só faz sentido onde a virgindade feminina era um item contratual do casamento e o homem tinha a obrigação financeira de sustentar a esposa. Na época de Jesus, a execução de uma mulher que fingisse ser virgem já não acontecia na prática. Com essa interpretação Jesus fortalece as obrigações do homem com a esposa e tira da boca dos discípulos a seguinte frase:
"Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. - Mateus 19:10”
O método de interpretação utilizado por Jesus envolve voltar ao modelo de Adão e Eva definido no Genesis e interpretar a carta de divórcio presente nesse modelo como um desvio do principio. Dessa forma consegue relativizar o trecho da Torá que dava permissão ao divórcio.
Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o, e dizendo-lhe: É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez,E disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne?Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e repudiá-la?Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. - Mateus 19:3-8
Apesar de estar mais alinhado a Shammai nesse caso, na maioria das vezes Jesus estava mais alinhado a Hillel, tanto por método de interpretação como por resultado.
Os escritos rabínicos listam sete princípios de interpretação da Torá aplicados por Hillel e seus discípulos:
Princípio 1 Kal vechamer ("leve e pesado"): O argumento de uma premissa menor para uma premissa maior
Princípio 2 Gezerah Shavah ("cortar igualmente"): O ensino baseado em uma anologia ou inferência de um versículo para outro
Princípio 3 Binyan av mikatuv echad ("construindo um princípio de ensino baseado em um verso"): a proposição principal é derivada de um verso
Princípio 4 Binyan av mishnai katuvim ("construir um princípio de ensino baseado em dois versos"): A proposição principal é derivada de dois versos
Princípio 5 Kelal uferat-perat vekelal ("geral e específico - específico e geral"): Ensinando de um princípio geral a um específico, ou de um princípio específico a um geral
Princípio 6 Keyotza bo bamakom acher ("como vem de outro lugar"): Um ensino baseado no que é semelhante em outra passagem
Princípio 7 Devar halamed meinyano ("uma palavra que se aprende com seu próprio assunto"): um assunto que se aprende com seu próprio assunto
Vemos Jesus aplicar ao menos os dois primeiros princípios em seus ensinamentos:
Princípio 1 Kal vechamer ("leve e pesado"): O argumento de uma premissa menor para uma premissa maior
Princípio 2 Gezerah Shavah ("cortar igualmente"): O ensino baseado em uma anologia ou inferência de um versículo para outro
Jesus usando o principio Kal vechamer ("leve e pesado")
O principio do “leve e pesado” é um principio que parte da premissa de que uma afirmação menor escrita nos textos bíblicos ou presente na realidade, torna óbvia uma afirmação maior de mesma natureza.
Esse tipo de argumento normalmente usa a expressão chave “quanto mais”.
Jesus utiliza essa forma de argumentação em alguns versículos dos Evangelhos, como, por exemplo, ao esperar a bondade de Deus
"Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que lhe pedirem?” - Mateus 7:11
Considerai os lírios, como eles crescem; não trabalham, nem fiam; e digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles.E, se Deus assim veste a erva que hoje está no campo e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?Lucas 12:27,28
Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves? - Lucas 12:24
Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos. - Mateus 10:29-31
Essa comparação aparece com a mesma forma e significado nos escritos rabínicos para defender que Deus controla o tempo em que o ser humano morre:
Simeon ben Yohai disse: “Nem mesmo um pássaro perece sem a vontade dos céus, quanto mais um filho do homem” - ySheb 38b, Genesis Rabbah 79:6
Jesus usando o principio Gezerah Shavah ("cortar igualmente")
O segundo principio de Hillel, que Jesus emprega nos evangelhos, é baseado em associações de palavras chaves que se repetem em dois trechos da Torá. Os trechos onde essas palavras chaves aparecem são sobrepostos revelando um novo significado.
Por exemplo, no tratado Pesachim do Talmude, explica que a palavra em hebraico para a expressão "seu tempo determinado" é usada tanto em relação ao cordeiro pascal em Números 9:2, como em relação a oferta diária, em Números 28:2, que também á oferecida no sábado.
Celebrem os filhos de Israel a páscoa a seu tempo determinado (be-mo'ado). - Números 9:2
Dá ordem aos filhos de Israel, e dize-lhes: Da minha oferta, do meu alimento para as minhas ofertas queimadas, do meu cheiro suave, tereis cuidado, para me oferecê-las ao seu tempo determinado. (be-mo'ado) - Números 28:2
Assim, pode-se inferir que o termo “tempo determinado" inclui o sábado e, portanto, o cordeiro pascal pode ser oferecido até mesmo no sábado, embora o trabalho vinculado a oferta do cordeiro normalmente esteja proibido no sábado (Pesachim. 66a).
É provável que Jesus estivesse aplicando essa técnica ao escolher como os dois maiores mandamentos, dois versículos da Torá que contem o termo “amarás”.
Amarás (ahab), pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças. - Deuteronômio 6:5
amarás (ahab) o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. - Levítico 19:18
Podemos resumir tudo isso com o nono ponto:
Jesus normalmente estava alinhado com as interpretações da Torá feitas pela escola farisaica de Hillel (com exceção do divórcio), e utilizava os mesmos métodos de interpretação da Torá.
No próximo post, vou analisar a visão sobre o pós vida compartilhada por Jesus e os fariseus:
8. Olam Hazeh, Olam Haba e a Ressurreição dos mortos
A ressurreição dos mortos Lendo os evangelhos, é claro que tanto Jesus quanto os fariseus criam na doutrina da ressureição dos mortos. O novo testamento confirma Flávio Josefo e outras fontes judaicas ao afirmar que a crença na ressurreição e nos anjos era algo que dividia fariseus e saduceus.