6. Os gentios, o sábado e os alimentos
Jesus era mais fariseu do que você pensa (e isso não é um xingamento) - Parte 3
Os gentios, o sábado e os alimentos
Outra ideia comum dos cristãos modernos é a de que Jesus aboliu o sábado e os mandamentos de pureza alimentar. Ao analisarmos o contexto histórico, entendemos que não foi bem assim.
Entenda que a ideia desse estudo não é defender que os cristãos adotem esses mandamentos judaicos, ao contrário, a perspectiva histórica revela que os cristãos primitivos de origem não judaica nunca seguiram o sábado e as observâncias alimentares impostas aos judeus.
Mesmo para o Talmude, a Torá completa deveria ser guardada apenas pelos judeus, e os gentios justos deveriam guardar apenas 7 mandamentos entregues aos filhos de Noé no inicio do Genesis.
Visto que o halakhot dos descendentes de Noé foi mencionado, uma discussão completa das mitzvot de Noé é apresentada. Os Sábios ensinaram em um baraita: Os descendentes de Noé, ou seja, toda a humanidade, foram ordenados a cumprir sete mitzvot: A mitzva de estabelecer tribunais de julgamento; e a proibição de bênção, maldição, o nome de Deus; e a proibição da adoração de ídolos; e a proibição de relações sexuais proibidas; e a proibição de derramamento de sangue; e a proibição de roubo; e a proibição de comer um membro de um animal vivo. - Sanhedrin 56
O concilio de Jerusalem, registrado em Atos 15, termina com Tiago seguindo a linha de interpretação presente no Talmude, de impor um número limitado de mandamentos aos gentios, que não incluíam o sábado ou o conjunto total de leis alimentares impostas aos judeus:
"Pois pareceu bem ao espírito santo e a nós não impor a vocês nenhum fardo além destas coisas necessárias: que persistam em se abster de coisas sacrificadas a ídolos, de sangue, do que foi estrangulado e de imoralidade sexual. Se vocês se guardarem cuidadosamente dessas coisas, tudo irá bem com vocês!” - Atos 15:28, 29
No entanto, os evangelhos não tratam da aplicação ou não do mandamento do sábado aos gentios, e os trechos que envolvem controvérsias a respeito do que deve ou não ser feito no sábado, não registram uma postura anti-sabatista da parte de Jesus, mas uma forma de interpretar o mandamento.
A maior de todas é a controvérsia a respeito de cura.
Quando Jesus pergunta aos fariseus no Evangelho se é lícito fazer o bem ou o mal no sábado, eles se calam:
E outra vez entrou na sinagoga, e estava ali um homem que tinha uma das mãos mirrada.E estavam observando-o securaria no sábado, para o acusarem.E disse ao homem que tinha a mão mirrada: Levanta-te e vem para o meio.E perguntou-lhes: É lícito no sábado fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida, ou matar? E eles calaram-se. - Marcos 3:1-4
Os escritos rabínicos já incluíam a ideia de que curar alguém ou buscar cura no sábado, é algo legitimo. Na Mishná, um rabino diz que qualquer possibilidade de perigo para a vida humana anula o sábado.
Além disso, o Rabino Matia ben Harash disse: se alguém tem dor na garganta, eles podem colocar o remédio em sua boca no Shabat, porque é uma possibilidade de perigo para a vida humana e todo perigo potencial para a vida humana anula o Shabat. - Mishnah Yoma 8
Em uma compilação medieval de interpretações da lei, violar o sábado para ajudar salvar a vida de alguém não só é permitido, como considerado um dever.
Para alguém que tem uma doença perigosa, é um mandamento quebrar o Shabat por ele. Aquele que se apressa para fazer isso é elogiado. Quem pergunta sobre isso é um assassino - Orach Chayim 328
Curar no sábado parece não ter sido uma grande inovação, até mesmo por isso, a reação de Jesus em relação aqueles que questionaram a cura no sábado parece ser de espanto.
E, olhando para eles em redor com indignação, condoendo-se da dureza do seu coração, disse ao homem: Estende a tua mão. E ele a estendeu, e foi-lhe restituída a sua mão, sã como a outra. - Marcos 3:5
Sendo assim, a postura daqueles fariseus específicos não refletia a visão que os fariseus como um todo tinham em relação a cura no sábado.
Se a permissão para curar no sábado tem precedentes claros nos escritos rabínicos, o episódio em que os discípulos colhem espigas parece mais inovador. A resposta de Jesus quando questionado sobre a atitude dos discípulos é citar um texto em que Davi, estando faminto, viola uma lei do templo ao comer pão da proposição, deixando a entender que os discípulos estavam famintos e isso justificaria uma violação do sábado:
E aconteceu que, passando ele num sábado pelas searas, os seus discípulos, caminhando, começaram a colher espigas.E os fariseus lhe disseram: Vês? Por que fazem no sábado o que não é lícito?Mas ele disse-lhes: Nunca lestes o que fez Davi, quando estava em necessidade e teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, no tempo de Abiatar, sumo sacerdote, e comeu os pães da proposição, dos quais não era lícito comer senão aos sacerdotes, dando também aos que com ele estavam? - Marcos 2:23-28
Embora seja uma interpretação pouco comum, ao justificar sua decisão, Jesus diz que o “sábado é feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado”,
E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.Assim o Filho do homem até do sábado é Senhor. - Marcos 2:23-28
Variações dessa frase estão presente em escritos rabinicos. Em um deles, defendendo a ideia de que a vida está acima do sábado, um rabino diz “o sábado foi entregue em suas mãos, e não você entregue nas mãos do sábado para morrer”
Outros tanna'im debateram essa mesma questão. Rabbi Yosei, filho de Rabbi Yehuda, diz que está declarado:
“Mas guarde meu Shabatot” (Êxodo 31:13). Alguém poderia pensar que isso se aplica a todos em todas as circunstâncias; portanto, o versículo afirma “mas”, um termo que restringe e qualifica. Isso implica que há circunstâncias em que se deve guardar o Shabat e circunstâncias em que se deve profaná-lo, ou seja, para salvar uma vida. Rabi Yonatan ben Yosef diz que está declarado: “Pois é sagrado para vocês” (Êxodo 31:14). Isso implica que o Shabat foi entregue em suas mãos, e você não foi dado a ele para morrer por causa do Shabat. - Yoma 85b
Em outro é dito:
Shimon b. Menassia diz (Ibid. 14) "E você deve guardar o sábado, porque é santo para você" - o sábado é dado a você e não você entregue ao sábado. - Mekhilta d'Rabbi Yishmael 31:13 2
Como em outro temas, Jesus participa em um debate interno da tradição oral do judaísmo na questão do sábado, não abolindo o mandamento como interpreta o cristianismo moderno, mas reinterpretando de acordo com uma hierarquia de importância, onde o amor a Deus e ao próximo estão acima de tudo.
Mais um ponto:
Jesus não aboliu o sábado e as leis alimentares (para os judeus), mas, da mesma forma que (alguns) fariseus, considerou como mandamentos menores em relação a salvar a vida humana.
No tema das leis alimentares, Jesus é mais conservador que os fariseus, mais inclinado a seguir a Torá escrita que aceitar parte da tradição oral.
Ele se opõe claramente a tradição de lavar as mãos antes de comer. No tempo de Jesus isso não significava também se opor a separação entre alimentos puros e impuros que está presente na Torá escrita, o objeto de defesa de Jesus nesse caso.
Para expor como muitas vezes a tradição oral era uma forma de banalizar a Torá escrita, Jesus cita o mandamento de amaldiçoar pai e mãe. Enquanto a versão escrita da Torá pune com morte quem amaldiçoar pai e mãe, a tradição oral diminui a pena para uma oferta.
Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos quando comem pão.Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição?Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá. Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe,E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. - Mateus 15:1-6
Os temas parecem não relacionados, mas ambos tem em comum a pureza. Jesus mostra que a mesma tradição oral que busca pureza alimentar adotando o hábito de lavar muitas vezes a mão, ameniza a importância da pureza da língua ao diminuir a pena da proibição de amaldiçoar pai e mãe.
Longe de defender a pena de morte para caso esse mandamento fosse quebrado, Jesus volta a hierarquia de importâncias ao revelar a hipocrisia dos fariseus em adotar esse hábito e ao mesmo tempo diminuir um mandamento mais importante usando a lei oral.
Esse caso mostra que não era em todas as situações em que a lei oral era uma humanização da lei escrita, como no "olho por olho e dente por dente". Jesus é mais literalista do que os fariseus na interpretação do honrar pai e mãe, porque vê uma tentativa de corromper o mandamento na interpretação oral.
Podemos resumir em mais um ponto:
Jesus defendeu a Torá escrita quando a tradição oral foi usada por alguns fariseus para amenizar mandamentos que ele considerava importante, (honrar pai e mãe).
Como veremos, essas diferenças de interpretação não existiam apenas entre Jesus e os fariseus, como entre os próprios fariseus.
No próximo post, vamos ver as relações entre os ensinos de Hillel e Shammai com os de Jesus:
7. Hillel, Shammai e Jesus
Hillel, Shammai e Jesus Como dito no inicio desse estudo, o conflito entre Jesus e os fariseus é algo recorrente na narrativa dos Evangelhos, mas pouco se lembram da passagem onde Jesus e um escriba concordaram. Esse episódio é chave para a entender a natureza da relação dos fariseus com Jesus: