5. Jesus e a (não) abolição da Torá
Jesus era mais fariseu do que você pensa (e isso não é um xingamento) - Parte 2
A não abolição da Torá
No conhecido sermão da montanha, no início do evangelho de Mateus, Jesus diz: "não vim abolir a lei, mas cumpri-la”, em sequência oferece uma serie de novas interpretações a diversos mandamentos. Essas interpretações muitas vezes fogem do sentido literal do texto, parecendo até mesmo contradizê-lo:
O cristianismo tem dificuldade de entender esse processo.
A maior parte da teologia cristã, em uma tentativa de conciliar a frase de Jesus com a idéia paulina de que a Torá foi abolida, preferiu interpretar o versículo entendendo que ao viver a Torá, Jesus não aboliu, mas pôs fim prático a ela, portanto "não aboliu a lei, mas a cumpriu". Tratando o termo “cumpriu” como um sinônimo de “extinguiu".
Se compreendermos a tradição oral registrada no Talmude, fica claro que o que Jesus fez em relação a lei, principalmente nesse discurso registrado no inicio de Mateus, não era uma novidade. Jesus não estava abolindo a Torá escrita ao dar nova interpretação a certos mandamentos, ele estava participando da Torá oral.
Por exemplo, vamos a mudança de interpretação mais radical que Jesus propõe no sermão, ao dizer que o “olho por olho, e dente por dente” deveria ser trocado pelo "dar a outra face"
"O teu olho não perdoará; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé." - Deuteronômio 19:21
"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” - Mateus 5:38,39
Esse versículo de Deuteronômio, já não era mais interpretado literalmente pelo judaísmo rabínico.
Em um longo debate registrado no tratado Baba Kamma do Talmude, os rabinos chegam a conclusão de que “olho por olho” não se refere a punição física, mas uma compensação financeira por um dano. Os argumentos para defender essa interpretação são variados:
Um dos rabinos propõe que um cego pode cegar outra pessoa, portanto não pode ser punido ficando cego novamente, a única forma de punição que poderia sofrer é de ordem financeira. Sobrepondo essa ideia com o versículo em que é dito “Tereis uma forma de lei", ou seja, que a lei deve ser aplicada a todos de forma igual, ele conclui que a punição física deve ser substituída pela compensação financeira para todos, não apenas para os criminosos cegos:
A Gemara apresenta outra derivação: é ensinado em outro baraita que Rabi Shimon ben Yoḥai diz: “Olho por olho” (Levítico 24:20), está se referindo à restituição monetária. Você diz que isso se refere à restituição monetária ou é apenas ensinar que quem causou a lesão deve perder um olho real? Pode haver um caso em que havia um cego e ele cegou outro, ou houve um com um membro decepado e ele decepou o membro de outro, ou houve um coxo e ele fez outro coxo. Nesse caso, como posso cumprir literalmente “olho por olho”, quando já lhe falta o membro que deve estar ferido? Se alguém sugerir que, nesse caso, uma penalidade monetária será imposta, que pode ser refutada: Mas a Torá afirmava: "Tereis uma forma de lei" (Levítico 24:22), que ensina que a lei deve ser igual Para todos vocês.
Outro rabino argumenta que se a expressão “um boi por um boi” é usada em conjunto a palavra “pagamento" em outro trecho da Torá, então a expressão “olho por olho” também deveria ser usada para se referir a restituição financeira.
A Gemara apresenta outra derivação: Rav Ashi disse que o fato de que alguém que fere outro paga uma restituição monetária é derivado de uma analogia verbal da palavra "para", como escrito em relação aos ferimentos causados às pessoas a partir da palavra "para", como escrito a respeito de um boi que chifrou outro boi. Está escrito aqui: “Olho por olho” (Êxodo 21:24), e está escrito ali, com relação a um boi avisado que espifrou o boi de outro: “Ele pagará um boi por um boi” (Êxodo 21:36). Assim como lá, o versículo não significa que o dono paga uma compensação com um boi real, mas sim paga uma restituição monetária, assim também aqui, aquele que fere o outro paga uma restituição monetária.
Outro propõe que não poderíamos interpretar “olho por olho” literalmente, pois os homens envolvidos poderiam ter tamanhos diferentes de olhos, e a pena poderia ser desigual. Pode parecer um argumento cômico, mas a grande preocupação é com a proporcionalidade das punições e o medo de ser injusto ao tentar praticar a justiça.
Rabi Dostai ben Yehuda diz: A frase: “Olho por olho” (Levítico 24:20), significa restituição monetária. Você diz que ele deve pagar uma restituição monetária à vítima, ou está apenas ensinando que quem causou a lesão deve perder um olho real? Você diz: Pode haver um caso em que o olho de quem causou a lesão seja grande e o olho da pessoa lesada seja pequeno. Como posso ler e aplicar literalmente a frase “olho por olho” neste caso?
Perceba que ao reinterpretar a lei escrita dessa forma, os rabinos estavam abrandando o mandamento original ao invés de torna-lo mais duro. Um preconceito comum no cristianismo moderno é acreditar que a lei oral era mais dura do que a lei escrita. Ao analisarmos exemplos reais no Talmude, vemos que as interpretações da lei feitas pelos rabinos eram tão reformistas como as interpretações feitas por Jesus. A diferença é que enquanto os rabinos buscam reinterpretar a lei na sobreposição de versículos e na argumentação, Jesus falava como a própria fonte de autoridade, como está registrado em Mateus
“Ensinava como tendo autoridade, e não como os escribas”
Jesus falava como um escriba instruído no Reino, conforme ele diz em Mateus, que tira de seu tesouro coisas novas e velhas, ou seja, tira da Torá interpretações novas e velhas:
E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas. - Mateus 13:52
Podemos então adicionar mais dois pontos a nossa lista:
Da mesma forma que os fariseus, ao propor novas interpretações para mandamentos antigos, Jesus não estava extinguindo a Torá escrita, mas participando da Torá Oral.
Ao contrário dos fariseus, Jesus falava com autoridade, como "um escriba instruído no Reino", e não se apoiava apenas nos métodos rabínicos para propor novas interpretações.
Na interpretação a respeito do mandamento do adultério, o método interpretação e resultado empregado por Jesus e pelos escritos rabínicos é idêntico. Até mesmo a forma como a interpretação é apresentada. Enquanto Jesus diz:
"Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela." - Mateus 5:27,28
A oposição entre o “foi dito” e o “eu, porém, vos digo”, é interpretada por alguns como a substituição do mandamento de Moises por um novo mandamento. Quando na verdade, essa mesma formula de “foi dito” e "eu porem vos digo”, aparece na literatura rabínica aplicada ao mesmo tema:
No que diz respeito ao mandamento: “Não cometerás adultério”, foi ensinado, explicado pelo Rabbi Simeon filho de Lakish, que se alguém comete adultério fisicamente com o seu corpo será chamado de adultero, mas nós dizemos a você, que aquele que comete adultério com os olhos será chamado de adultero. - Pesika Rabbati 24
Estabelecer uma hierarquia nos mandamentos, colocando alguns como “leves” ou “pequenos” e outros como “pesados” ou “ grandes” é um método empregado por Jesus e pelos rabinos. Assim, o adultério não começaria na transgressão física, considerada uma transgressão pesada, mas em um pequeno olhar, considerado uma transgressão leve. Jesus compara as transgressores leves com engolir mosquito e as pesadas com engolir camelos:
"Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!” - Mateus 23:24
Em outro trecho, Jesus deixa claro a existência de mandamentos pequenos:
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. - Mateus 5:19
Os mandamentos pequenos deveriam ser seguidos a risca para evitar transgredir um mandamento grande.
Quando, no mesmo sermão, Jesus coloca o encolerizar-se sem motivo na mesma perspectiva de comentar um assassinato. Ele parte da ideia de que a transgressão do mandamento pequeno, de encolerizar-se, levaria a transgressão do mandamento grande, de cometer assassinato.
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. - Mateus 5:21,22
Todo o exercício que leva a essa conclusão aparece nos escritos rabinicos, onde cada passo que leva ao assassinato é considerado uma transgressão de um mandamento, e do pequeno ao grande, culmina no crime:
Acompanhe a lógica proposta por essa interpretação de um trecho do livro de Deuteronômio.
“Mas, havendo alguém que odeia a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o fere mortalmente” (Deuteronômio 19:11)
Desse verso é entendido: se alguém transgrediu um pequeno mandamento, ele ou ela transgredirá um grande mandamento.
Se alguém transgredir: mas amarás o teu próximo como a ti mesmo (Levítico 19:18),
essa pessoa finalmente será levado a transgredir: Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo (Levítico 19:18),
e transgredir: “Não odiarás a teu irmão no teu coração” (Levítico 19:17),
e transgredir “para que teu irmão viva contigo.” (Levítico 25:36),
até que finalmente será levado a cometer assassinato.
Por isso está dito: “havendo alguém que odeia a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o fere mortalmente” Deuteronômio 19:11 - Sifre Deuteronomio 22:13
Podemos adicionar a nossa lista o quinto ponto:
Da mesma forma que os fariseus, Jesus hierarquizava os mandamentos da Torá, colocando alguns como mais importantes que outros, sem desprezar os pequenos mandamentos.
No próximo post, vou abordar a questão do sábado e dos gentios:
6. Os gentios, o sábado e os alimentos
Os gentios, o sábado e os alimentos Outra ideia comum dos cristãos modernos é a de que Jesus aboliu o sábado e os mandamentos de pureza alimentar. Ao analisarmos o contexto histórico, entendemos que não foi bem assim. Entenda que a ideia desse estudo não é defender que os cristãos adotem esses mandamentos judaicos, ao contrário, a perspectiva histórica re…