15. O que fazer para ser salvo? As várias respostas bíblicas
Ou, como Lutero entendeu Tiago melhor do que Calvino
Um meme frustrado
Tempos atrás, eu vi esse meme com os dizeres "Confusão Bíblica total: o que fazer para ser salvo?", na sequência, ao lado do desenho de um leitor da Bíblia com uma expressão de espanto, uma série de referências a versículos são colocados em um quadro, e a imagem termina com a frase "Um único erro invalida toda a Bíblia". Ou seja, o autor da imagem sugere que os versículos que ele listou no quadro são contraditórios em responder a pergunta "como ser salvo?", portanto a Bíblia tem erro e deve ser descartada.
Ele está absolutamente errado em quase tudo nesse meme, com exceção de apenas uma coisa. Vou explicar os erros que ele cometeu, para depois comentar o único acerto.
Primeiro erro é sugerir que há alguma contradição nos versículos selecionados. Não há. Alguns dos versículos que ele selecionou mostram a graça mediante a fé em Cristo como único meio de salvação. Outros versículos mostram ações como o batismo e "invocar o nome do Senhor" como atos de confirmação da fé, não métodos de salvação, portanto não há contradição. Um terceiro grupo de versículos coloca a esperança como outro confirmador da fé. Eu não sei qual nível de literalismo o autor do meme usou para conseguir ver contradição nesses versículos, ou o quanto ele acha que a resposta teria que ser curta, mas, ao contrário do que ele sugere, é plenamente possível responder a pergunta "o que fazer para ser salvo?" condensando esses versículos sem chegar a nenhuma contradição.
O segundo erro do meme é essa frase "um único erro invalida toda a Bíblia". A doutrina da inerrância e a doutrina da infalibilidade bíblica podem ser muito importantes para a maioria das vertentes do protestantismo, mas não é comum a todas as vertentes do cristianismo. Vários cristãos, e grupos cristãos, ao longo da história não defendem mais ou nem chegaram adotar essa visão da inerrância bíblica. É muito comum ver ateus usando esse argumento de que se a Bíblia tem erros, logo o cristianismo é um erro e tem que ser descartado. Isso acontece muito porque os debates entre cristãos e ateus normalmente são influenciados pela cultura norte-americana onde a inerrância bíblica é considerada um item fundamental do cristianismo, portanto, os ateus apontam erros na Bíblia, os cristãos contra argumentam que esses erros não existem, e o debate fica centrado nisso.
Bom, agora o único acerto do autor desse meme é sugerir que a Bíblia, mais exatamente o Novo Testamento, não tem uma única resposta a pergunta "como conseguir perdão dos pecados?". Realmente há uma contradição ou, no mínimo, há uma divergência de ênfase nas respostas que os textos do novo testamento dão a essa pergunta.
Para entendermos melhor isso, eu gostaria de compartilhar um mapeamento, baseado no erudito Raymond Brown, da diversidade de grupos no cristianismo primitivo.
Esse mapeamento separa os cristãos primitivos que escreveram o Novo Testamento em quatro grandes grupos, um grupo que ele chama de Hebraico, que é o grupo do qual faziam parte Pedro, Tiago e João, um segundo grupo que é o grupo Petrino, que é o grupo responsável pelo evangelho de Marcos buscando autoridade na figura de Pedro, um terceiro grupo que ele chama de Helenístico, que é onde está Paulo e suas epístolas, e um quarto grupo que ele chama de Joanino, que seria o grupo que escreveu e evangelho e as epistola de João, que busca autoridade em João, mesmo que o evangelho e as cartas não tenham sido escritas pelo João histórico.
Esse mapeamento da diversidade dentro do cristianismo primitivo é a melhor explicação para muitas das contradições internas do novo testamento, em especial essa que eu vou detalhar: a divergência que há entre a epistola de Tiago e a principalmente a epistola de Gálatas.
Diferentes visões: Gálatas e Tiago
A própria epístola aos Gálatas, no capítulo 2, detalha o conflito que aconteceu entre Paulo e os líderes da Igreja de Jerusalem e admite uma separação entre em um “evangelho da circuncisão", o evangelho de Pedro e Tiago, e do "evangelho da incircuncisão", o evangelho de Paulo.
Se você colocar lado a lado o capítulo 2 da epistola de Tiago e o capítulo 3 da epístola aos Gálatas, fica fácil notar que há uma contradição entre as duas, por mais que o cristianismo que defende a inerrância bíblica lute para não vê-la.
Embora a epístola de Gálatas tenha sido escrita antes, e a epéstola de Tiago seja uma provável resposta, eu deixei a de Tiago a esquerda para demonstrar que ela simplesmente sistematiza ideias que já existiam em escrituras antecessoras a carta de Tiago, que pertenciam a ao mesmo grupo que o Brown chama de Hebraico. Na verdade, muitas dessas ideias existem até em outros escritos judaicos como o Talmude.
Primeiro, o autor da epistola de Tiago começa resumindo a lei como "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" e chama isso de a lei real. Jesus fala isso nos evangelhos e alguns rabinos no talmude como o rabbi Akiva que viveu após Jesus e o rabi Hillel que viveu antes de Jesus. Paulo, em Gálatas, concorda parcialmente com isso no fim da epístola, mas, quando fala “lei”, também está incluindo a circuncisão, portanto eu considerei como concordância parcial.
Depois, o autor de Tiago diz que se deve guardar toda a lei, e se alguém tropeçou em um ponto, tornou-se culpado de todos, trazendo pra si o juízo. Jesus também diz isso nos evangelhos ao dizer que nenhum til da lei cairia. Paulo concorda, aliás ele estressa isso em todas as suas cartas, para reforçar a ideia de que é impossível cumprir toda a lei, portanto esse não pode ser o critério salvação.
Agora nós chegamos no ponto chave, eu até deixei grifado na imagem. Se tanto para Paulo como para Tiago ao violar um único mandamento o homem é culpado por toda lei, apenas Tiago tinha a noção de que a misericórdia triunfa sobre o juízo, ou seja, Tiago cria, assim como todas as escrituras mais judaicas do novo testamento, que sendo misericordioso o homem recebe misericórdia de Deus. E aqui eu separei algumas falas de Jesus no evangelho de Mateus que expressam essa ideia como "perdoai nossos pecados assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", "não julgais para que não sejais julgados, com a medida que medires se medirão a vós", "bem aventurados dos misericordiosos porque alcançarão misericórdia", tem também a parábola do servo que recebeu perdão e não perdoou, enfim. Essa noção de que a misericórdia triunfa sobre o juízo, e que ser misericordioso faz o ser humano alcançar a misericórdia, é algo que não aparece e não é central em Paulo, e isso gera a grande divergência de interpretação de como alcançar perdão de Deus. Em Romanos, Paulo chega a sugerir que o homem se condena ao julgar, mas ele não cita que o perdão é alcançado através do perdão.
A partir desse ponto, Tiago continua dizendo que a fé verdadeira é justificada pelas obras de misericórdia, e Paulo segue dizendo que a fé é o suficiente para se salvar e que a lei é uma maldição. A idéia de Tiago de que obras de misericórdia agradam a Deus também aparecem nos Evangelhos, sobretudo o evangelho de Mateus, na parábola dos dois filhos, o filho que disse que não faria a vontade do pai, mas fez, é considerado superior ao filho que disse que faria a vontade do pai, mas não fez. E principalmente no capítulo 25 de Mateus do conhecido "tive fome e deste-me de comer", onde é feita a descrição do julgamento final colocando as obras de misericórdia como critério de salvação. A passagem de Jesus e o jovem rico inteira é sobre como as obras de misericórdia são importantes.
Tiago segue sua exposição explicando porque crer não é suficiente pois até os demônios criam, e aqui acho que Paulo e Tiago tinham uma visão diferente do que significava fé. No evangelho de Mateus, Jesus concorda novamente com Tiago dizendo que muitos dos que dizem ter fé e não fazem a vontade do pai não entrariam no reino.
Por fim, Tiago termina discordando da maneira como Paulo interpreta um versículo de Genesis. Tanto na carta aos Gálatas como na carta aos Romanos, Paulo usa um versículo que diz "E creu Abraão creu no Senhor, e isso foi imputado por justiça" para dizer que Abrãao foi justificado pela fé. Tiago reinterpreta o versículo dizendo que a fé de Abraão foi aperfeiçoada por suas obras ao oferecer Isaque no altar.
Resumindo: a preocupação de Paulo era mais confessional, a ênfase estava na proclamação da mensagem e na fé, enquanto a ênfase de Tiago estava nas obras de misericórdia. Tiago chega a resumir a religião em "visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo" (Tiago 1:27), sendo esse visitar os órfãos e viúvas uma referência as obras de justiça em Deuteronômio (10:18)
Quem defende a idéia de inerrância ou infalibilidade bíblica vai dizer que não há qualquer contradição entre Paulo e Tiago. Quando tentam fazer uma leitura sistemática do Novo Testamento, onde todos os livros são resumidos a uma doutrina unificada, normalmente se dá uma ênfase maior a Paulo, enquanto a visão de Tiago é "subordinada" a visão de Paulo. Vamos ver o que o fundador do protestantismo pensava a respeito.
Lutero lendo Tiago (e não gostando)
Lutero, o fundador do protestantismo, chegou a dizer que a epístola de Tiago era uma epístola de palha, tentou tirar a carta do cânone bíblico e, segundo Chesterton, em um ataque de fúria, Lutero chegou a rasgar as páginas da epístola de uma Bíblia.
Muitos protestantes vão dizer que Lutero se equivocou nesse momento, que ele não entendeu a epístola de Tiago, e que a igreja católica usava essa epístola para vender perdão e por isso Lutero reagiu dessa forma.
Muitos católicos vão dizer que Lutero era louco, que as epístolas que ele não entendeu foram as de Paulo, e que ele fez isso pois a epístola de Tiago contradiz a sua doutrina de “salvação só pela fé".
Eu penso que nem os católicos e nem os protestantes entendem que Lutero foi um dos primeiros leitores da Bíblia, depois do estabelecimento do cânone, a perceber essa divergência entre os livros, e, ao optar pela visão de Paulo, em um ato de coerência, tentou remover da Bíblia a visão de Tiago.
Até Calvino, em seu comentário sobre a epístola de Tiago, foi enganado pelo próprio viés:
A partir dos escritos de Jerônimo e Eusébio, parece que antigamente esta Epístola não era recebida sem oposição por muitas igrejas. Hoje também existem alguns que não a consideram com digna de autoridade. Contudo, estou disposto a recebê-la sem controvérsia, porque não vejo boa causa para rejeitá-la. Pois aquilo que no capítulo dois parece inconsistente com a doutrina da justificação gratuita, explicaremos facilmente em seu devido lugar. Embora, ao proclamar a graça de Cristo, ele pareça ser mais escasso do que convinha a um apóstolo, certamente não é necessário que todos lidem com os mesmos argumentos.
Lutero, na introdução que escreveu ao Novo Testamento, diz o seguinte:
“Deve-se distinguir entre livros e livros. Os melhores são o Evangelho de São João e as Cartas de São Paulo, especialmente a dos Romanos, Gálatas e Efésios, e a 1ª Carta de São Pedro; estes são os livros que te manifestam a Cristo e que te ensinam tudo o que precisas para a salvação, ainda que não conheças nenhum outro livro. A Carta de Tiago, diante destes [livros], nada mais é do que palha, pois não apresenta nenhum caráter evangélico” (Prólogo do Novo Testamento, de 1546. Bibel 6,10).
Note que Lutero não cita entre os melhores nenhum dos livros que na divisão do Raymond Brown estão na tradição hebraica. O Evangelho que ele escolhe é o evangelho de João, que é um livro considerado mais simbólico e muito menos histórico do que os evangelhos sinópticos. As pessoas podem reclamar de tudo em Lutero, só não podem reclamar de incoerência, já que no século 16, ele já conseguia perceber o que mesmo no século 21 os religiosos não conseguem perceber: a diversidade interna no novo testamento.
O que muda nas nossas vidas?
Agora, qual a relevância disso tudo para nós cristãos no dia de hoje? Eu penso que o cristianismo, principalmente as variantes do protestantismo atual, precisa resgatar a visão de Tiago das obras de misericórdia e sua importância.
A contrário de Lutero, eu penso que a visão de Tiago gera frutos melhores do que a visão de Paulo. Para ilustrar esse ponto, vou contar uma história de uma conversa que um amigo meu teve com uma ex-namorada que era filha de pastor. Na época, ele estava participando de algum trabalho social, não sei se era juntando alimentos para cesta básica ou alguma coisa do tipo, e quando ela ficou sabendo perguntou para ele: "você acha que vai conseguir sua salvação fazendo isso?". Na cabeça dela, a partir do momento que alguém tenta ajudar ao próximo, a pessoa está tentando comprar a salvação. O engraçado é que essa moça nem era muita religiosa, mesmo o pai sendo pastor, ela não frequentava mais a igreja, mas essas fórmulas doutrinárias ficaram impressas em sua cabeça.
Isso eu vejo que é comum em pessoas protestantes, principalmente evangélicas, fazer pouco caso para ações de misericórdia defendidas por Tiago e endossar aquilo que eu chama de obsessão ortodoxa, que é defender o quanto a visão da própria igreja está correta e o quanto a visão do outro está errada. É bem aquela cena da parábola do bom samaritano, onde o samaritano, que seria o "herege", foi bom com o homem que descia de Jerusalem para Jericó, enquanto o levita e o sacerdote, os representantes da ortodoxia, foram embora enquanto ele corria risco de vida. Mas as igrejas cristãs hoje preferem muito mais extrair um tribalismo da ortodoxia do que praticar obras de misericórdia como as do bom samaritano, e para isso é preferível criar interpretações radicalizadas das cartas de Paulo e diminuir as ações de Tiago, como fez Lutero.