9. Jejum, oração e esmola. Para Jesus, a esmola é mais importante que o dízimo
Jesus era mais fariseu do que você pensa (e isso não é um xingamento) - Parte 6
Boa parte desse estudo foi feito com base nos livros:
Meet the Rabbis - Brad Young
Mishnah and the words of Jesus - Roy Blizzard
Jejum, oração e esmola
Durante o período da quaresma, os católicos são incentivados a praticar jejum, oração e esmola. Essas chamadas práticas quaresmais surgem de um estudo cuidadoso do capítulo 6 de Mateus. Do versículo 1 a 18, Jesus incentiva o jejum, oração e esmola ao mesmo tempo em que alerta para que não sejam feitas de maneira hipócrita, buscando a atenção dos homens.
Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles; aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, que está nos céus. (…)
E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. (…)
E, quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. - Mateus 6:1-18
Ao dizer que os fariseus gostavam exibir essas práticas, é implícito que não foi Jesus quem as estabeleceu, mas que elas já existiam no judaísmo do segundo tempo.
Essas três obras como sinais de piedade aparecem novamente no novo testamento em um trecho de Atos na ação do centurião Cornélio:
Piedoso e temente a Deus, com toda a sua casa, o qual fazia muitas esmolas ao povo, e de contínuo orava a Deus. Este, quase à hora nona do dia, viu claramente numa visão um anjo de Deus, que se dirigia para ele e dizia: Cornélio. (…)
O qual, fixando os olhos nele, e muito atemorizado, disse: Que é, Senhor? E disse-lhe: As tuas orações e as tuas esmolas têm subido para memória diante de Deus; Por isso, sendo chamado, vim sem contradizer. Pergunto, pois, por que razão mandastes chamar-me? E disse Cornélio: Há quatro dias estava eu em jejum até esta hora, orando em minha casa à hora nona. E eis que diante de mim se apresentou um homem com vestes resplandecentes, e disse: Cornélio, a tua oração foi ouvida, e as tuas esmolas estão em memória diante de Deus. - Atos 10:2-31
O livro de Tobias, ausente nas bíblias protestantes, mas parte da católica, também reforça a trinca de obras:
“Boa coisa é a oração acompanhada de jejum e a esmola é preferível aos tesouros de ouro escondidos, porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna; aqueles, porém, que praticam a injustiça e o pecado são os seus próprios inimigos.” - Tobias 12:8-10
Todas essas menções relacionadas a trinca das boas obras de piedade tem sua origem nos fariseus, na literatura rabínica, vemos menções dessa trinca adotada por Jesus e, décadas depois, os padres católicos:
Rabbi Leazar ensinou: Três ações cancelam a punição dos Céu: Oração, justiça (esmola) e arrependimento (jejum). As três são mencionadas no versículo (2 Crônicas 7:14): “E se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar” (isso se refere a oração) , “e buscar a minha face” ( isso se refere a justiça, pois está escrito no salmo 17:15, Quanto a mim, contemplarei a tua face na justiça; eu me satisfarei da tua semelhança quando acordar.) e finalmente “e se converter dos seus maus caminhos,” (isso se refere ao arrependimento, jejum). Se um indivíduo fizer todas as três, a promessa na Escritura é que “então eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra” - y. Ta'anit 65b ch. 2, hal. 1
Justiça é caridade (esmola)
Se o jejum e oração são práticas reconhecidas e adotadas por todos os cristãos, a esmola é um tema mais complicado para parte da tradição protestante. Talvez por conta do dualismo que surgiu na crença protestante entre fé e obras.
Vários termos nos evangelhos não são compreendidos de forma plena por falta do contexto do judaísmo do segundo templo, um deles é o uso do termo “justiça”
Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. - Mateus 6:32-34
Mas o que é essa “justiça”?
Por conta de trechos onde o termo “tsedakah” (justiça) é usado no Antigo Testamento, no desenvolvimento da tradição oral, esse termo ganhou uma série de outros significados além do literal, como “esmolas” ou “obras de caridade”.
Por exemplo:
Pois o SENHOR vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas; que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito. - Deuteronômio 10:17-19
Esse trecho, que coloca o termo “justiça” paralelo a atos de caridade (dando-lhe pão e roupa), é origem da defesa dos atos da misericórdia na epistola de Tiago:
A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo. - Tiago 1:27
É uma ideia muito presente na literatura rabínica de que fazer caridade é uma obrigação. Essa ideia também aparece no Antigo Testamento, a melhor forma de entender o que Mateus 6 fala sobre justiça, é comparar com o Provérbios 19:17:
Ao Senhor empresta o que se compadece do pobre, ele lhe pagará o seu benefício.
Por isso, Mateus 6 fala sobre a justiça do reino logo após falar sobre posses.
Traduzindo:
Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a a sua tsedakah (atos de caridade, esmolas), e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. - Mateus 6:32-34
Ou seja, Deus retribui atendendo as necessidades do misericordiosos.
Acumular tesouros no céu.
Quando lemos esse outro trecho de Mateus 6, entendemos o que Jesus disse sem muito esforço:
Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. - Mateus 6: 19-21
Mas o trecho ganha um novo contorno ao conhecermos uma das histórias presentes nos escritos rabínicos a respeito de um homem que “destruiu” seus tesouros nessa terra:
Houve um incidente envolvendo o Rei Munbaz, que foi e distribuiu todos os seus tesouros [aos pobres] nos anos de seca, e seus irmãos lhe disseram: "Seus antepassados acumularam tesouros e acrescentaram aos de seus pais, e você foi e distribuiu todos os seus tesouros e os de seus pais." Ele lhes disse: "Meus antepassados armazenaram tesouros abaixo, mas eu armazenei tesouros acima, como está escrito (Sl. 85:12): 'A verdade brotará da terra [e a justiça olhará do céu].' Meus antepassados armazenaram tesouros em um lugar que uma mão [humana] pode alcançar, mas eu armazenei tesouros em um lugar que nenhuma mão pode alcançar, como está escrito (Sl. 89:15): 'A justiça e o juízo são a base do Teu trono.' Meus antepassados armazenaram tesouros que não produzem frutos (ou seja, não geram lucro), mas eu armazenei tesouros que produzem frutos, como está escrito (Is. 3:10): 'Dizei ao justo que bem [lhe irá, pois comerá do fruto de suas ações].' Meus antepassados armazenaram tesouros de dinheiro, enquanto eu estou armazenando tesouros de almas, como está escrito (Prov. 11:30): 'O fruto do justo é uma árvore de vida, e aquele que ganha almas é sábio.' Meus antepassados armazenaram tesouros para outros, enquanto eu estou armazenando tesouros para mim mesmo, como está escrito (Deut. 24:13): 'E será para você como justiça diante do Senhor seu Deus.' Meus antepassados armazenaram tesouros para este mundo, enquanto eu estou armazenando tesouros para o mundo vindouro, como está escrito (Is. 58:8): 'E a tua justiça irá adiante de ti, [e a glória do Senhor será a tua retaguarda].' A caridade e os atos de bondade são tão importantes quanto todos os mandamentos da Torá. A caridade se aplica aos vivos, os atos de bondade se aplicam aos vivos e aos mortos. A caridade se aplica aos pobres, os atos de bondade se aplicam aos pobres e aos ricos. A caridade é [realizada] com o dinheiro de uma pessoa, os atos de bondade com seu dinheiro e sua pessoa." *Y. Peah I.1.20 (seguindo a tradução de Guggenheimer)* - Tofta Peah 4:18
Esse trecho implica que o “não ajuntar” envolvia também dar esmolas ou colocar o patrimônio a serviço do próximo.
Olho bom também é sobre justiça (caridade)
Seguindo a advertência para não ajuntar dinheiro nessa terra, Jesus fala sobre “olho bom” e “olho mau”. Já vi diversas interpretações para as expressões “olho bom” e “olho mau” desse trecho, inclusive sexuais, como se o tema fosse o desejo sexual, mas não, esse trecho, como a segunda metade inteira de Mateus 6, continua falando sobre dinheiro e a questão financeira.
A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. - Mateus 6:22-24
A origem das expressões “olho bom” e “olho mau”, assim como foi o caso do significado expandido do termo justiça, tem origem em Deuteronômio:
Quando entre ti houver algum pobre, de teus irmãos, em alguma das tuas portas, na terra que o Senhor teu Deus te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão que for pobre; antes lhe abrirás de todo a tua mão, e livremente lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. guarda-te, que não haja palavra perversa no teu coração, dizendo: Vai-se aproximando o sétimo ano, o ano da remissão; e que o teu olho seja maligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada; e que ele clame contra ti ao Senhor, e que haja em ti pecado. Livremente lhe darás, e que o teu coração não seja maligno, quando lhe deres; pois por esta causa te abençoará o Senhor teu Deus em toda a tua obra, e em tudo o que puseres a tua mão. Pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra. - Deuteronômio 15:7-11
A literatura rabínica louva o olho bom e coloca como um do feitos de Abraão:
Qualquer um que tenha estas três coisas é dos alunos de Abraão, nosso pai, e [qualquer um que tenha] outras três coisas é dos alunos de Balaão, o malfeitor: [aquele que tem] um bom olho, um espírito humilde e um apetite modesto — é dos alunos de Abraão, nosso pai. [Aquele que tem] um olho maligno, um espírito arrogante e um apetite insaciável — é dos alunos de Balaão, o malfeitor. - Pirkey Avot 5:19
A esmola é superior ao dízimo.
Hoje em dia, não é raro ver algum pastor protestante usar Mateus 23 para a defesa do dízimo moderno, muitos deles descontextualizam o trecho abaixo:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. - Mateus 23:23
Esse não omitir aquelas é usado como uma defesa do dízimo, note que o termo juízo é citado, já vimos o significado de “justiça”, mas no trecho de Lucas essa ideia fica mais clara:
Ao falar Jesus estas palavras, um fariseu o convidou para ir comer com ele; então, entrando, tomou lugar à mesa. O fariseu, porém, admirou-se ao ver que Jesus não se lavara primeiro, antes de comer. O Senhor, porém, lhe disse: Vós, fariseus, limpais o exterior do copo e do prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e perversidade. Insensatos! Quem fez o exterior não é o mesmo que fez o interior? Antes, dai esmola do que tiverdes, e tudo vos será limpo. Mas ai de vós, fariseus! Porque dais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças e desprezais a justiça e o amor de Deus; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas. Ai de vós, fariseus! Porque gostais da primeira cadeira nas sinagogas e das saudações nas praças. Ai de vós que sois como as sepulturas invisíveis, sobre as quais os homens passam sem o saber! - Lucas 11:37-44
Estranho em uma conversa sobre pureza ritual Jesus levantar o tema do dízimo. Segundo Hyam Maccoby, no livro “Jesus the Pharisee”, uma das possíveis soluções para isso é o fato de que o fariseu que acompanhava Jesus era um dos “haverim” que defendiam pureza ritual estrita e dízimo estrito.
Se analisarmos com cuidado a fala de Jesus, dar esmola aparece como algo que antecede o dever do dízimo e implica em limpeza. Compare novamente com o trecho de Tobias:
“Boa coisa é a oração acompanhada de jejum e a esmola é preferível aos tesouros de ouro escondidos, porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna; aqueles, porém, que praticam a injustiça e o pecado são os seus próprios inimigos.” - Tobias 12:8-10
A esmola é vista como um ato de misericórdia, e como Jesus nos evangelhos sempre repete:
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia - Mateus 5:5
É notável o fato de que os pastores que usam esse trecho para falar sobre a obrigatoriedade do dízimo não comentem nada sobre o que Jesus fala a respeito da esmola. Por Que Será? Fica a questão para refletirmos.
No futuro, pretendo levantar outros pontos e continuar essa série, mas espero que ao leitor tenha ficado claro que Jesus era um homem de seu tempo e, sim, era muito mais fariseu do que pensávamos. É uma pena que o termo “fariseu” tenha virado um xingamento no cristianismo moderno e a origem farisaica das ideias de Jesus não seja notada.