22. As reais vítimas do "Filho do Fogo" - O que podemos aprender com o Caso Daniel Mastral - Parte 2
Pânico moral: das "bruxas" caçadas em Salem às acusações de satanismo nas igrejas evangélicas dos anos 2000, que chegaram a envolver até um futuro presidente da república.
Eu já havia começado a escrever esta série antes da trágica morte de Daniel Mastral no início deste mês. O texto tem o propósito de entender o que levou Mastral a alcançar fama e relevância no meio evangélico, e o que o mundo cristão, em geral, pode aprender com essa história para evitar novos erros, sem faltar com o respeito à vítima e aos seus familiares.
Como explicado no post anterior, vários elementos da mitologia do livro Filho do Fogo já haviam aparecido em livros anteriores publicados nos Estados Unidos, originários de igrejas neopentecostais. A literatura de Mastral atendia a uma demanda por livros com testemunhos de ex-satanistas. Neste post, vou mostrar como essa história, que ainda é considerada verdadeira por muitos, impactou negativamente a vida de diversas pessoas que serviram de base para personagens do livro. A mistura de muita ficção com pouca realidade causou transtornos na vida das pessoas que supostamente serviram de base para as personagens, vítimas do medo e de um pânico moral provocado pelo temor de satanistas infiltrados.
“Filho do Fogo - O Descortinar da Alta Magia” (1999) - Resumo do Livro
O livro narra a trajetória de um ex-satanista que, durante a adolescência, teria se envolvido com a Irmandade Satânica por aproximadamente cinco anos. Aos 16 anos, ele iniciou um relacionamento com "Camila", uma jovem evangélica, que desde o começo o incentivou a frequentar sua igreja. Durante alguns anos, ele visitou a igreja de maneira esporádica e teve contato com o Evangelho, especialmente por meio da convivência com a família de "Camila", que tentou convertê-lo ao cristianismo. No entanto, o autor afirma que a fé dessa família era superficial, com destaque para o irmão de "Camila", o "Pastor Sérgio", que era responsável pelo departamento infantil da igreja.
O autor relata que, ainda jovem, começou a se corresponder com a Igreja de Satanás, situada em São Francisco (EUA) — a mesma cidade é citada por Rebecca Brown e Mike Warnke como sede da seita satânica, além de ser onde está localizada a igreja fundada por Anton LaVey. Com o apoio de "Marlon", um político influente da época, o autor começou a participar, após nove meses, de encontros preparatórios no palacete de "Zórdico". Aos 18 anos, ele foi formalmente iniciado na Irmandade. A partir desse momento, passou a se comunicar com um demônio chamado "Abraxas", que se tornou seu guardião e era uma entidade de grande poder. Embora sentisse repulsa pelo cristianismo, ele continuou a frequentar a igreja ao lado de sua namorada. Dois anos após sua iniciação, ele alcançou o nível de mago, recebendo treinamento teórico e aprendendo a realizar pequenos encantamentos. Sua ascensão dentro da Irmandade se intensificou a partir desse ponto.
Aos 20 anos, durante o período entre a festa de outono (21 de março) e a festa de primavera (23 de setembro), ele abriu todos os nove portais e foi consagrado como feiticeiro. Um mês depois, participou de uma cerimônia em que lhe foi revelado o plano satânico para o fim dos tempos e a vinda do anticristo, marcando o início do 3º ciclo (666 anos após o nascimento de Jesus), previsto para começar em 6 de março de 1998. Ele foi informado de que fazia parte de um seleto grupo de 90 membros da Irmandade escolhidos para integrar a elite política do país. Juntamente com "Morrit", ele deveria representar a bancada evangélica no Congresso Nacional.
Meses após essa aliança, o autor afirma que foi levado em espírito ao inferno, onde encontrou o demônio "Belfegor" e completou o segundo dos três rituais necessários para a abertura completa do nono portal. Ele também descreve a infiltração de satanistas em diversas instituições cristãs, como igrejas, capelanias de hospitais, seminários e escolas evangélicas. Esses satanistas se faziam passar por cristãos com o objetivo de destruir as igrejas, utilizando feitiçaria e espalhando doutrinas heréticas, com a intenção de enfraquecer o trabalho cristão por meio de sedução, calúnia e encantamentos.
Contudo, no caso do autor, o plano não se concretizou. Ele já resistia a algumas práticas satânicas, como o sacrifício humano, o rito da fertilidade e a celebração do Sabbath. Ao frequentar uma igreja específica, ele acabou se convertendo ao Evangelho e foi libertado do cativeiro espiritual em que se encontrava.
Ao final, é revelado que, apesar de seu envolvimento com a Irmandade ter ocorrido apenas na juventude, o protagonista não era filho legítimo de seu pai, mas fruto de um relacionamento extraconjugal de sua mãe com um poderoso satanista — o mesmo "Marlon" que o havia guiado durante seu tempo na seita.
O livro conclui com apêndices, incluindo cartas destinadas a pessoas mencionadas ao longo da narrativa, um poema e um resumo do Evangelho.
Manifesto da AEVB em prol da Capelania Evangélica Hospitalar do Hospital das Clínicas (2001)
Quando o livro de Mastral foi lançado, na época como uma obra autobiográfica, as pessoas começaram a associar personagens do livro a figuras do mundo real. Uma das primeiras associações foi entre uma personagem satanista infiltrada em uma capelania de hospital e a capelã Eleny Vassão de Paula Aitken. Detalhes da descrição da personagem coincidiam em parte com aspectos da vida de Aitken, como ser casada com um missionário americano, ser capelã voluntária, e suas características físicas. Essas semelhanças com a realidade foram misturadas com o fictício envolvimento com o satanismo.
Sobre a personagem, o autor a descreveu como uma capelã satanista que distorcia a Verdade, apresentando apenas parte do Evangelho durante o evangelismo no hospital, enganando as pessoas. Além disso, ele afirmava que ela utilizava folhetos evangelísticos produzidos pela irmandade satânica, com material consagrado e gravuras de crianças sacrificadas em rituais, cujas imagens eram posteriormente pintadas sob inspiração demoníaca, contendo figuras subliminares do demônio.
Em reação a essa associação, a AEVB (Associação Evangélica Brasileira) lançou um manifesto de repúdio ao livro de Mastral e exigiu explicações. Em um trecho do próprio manifesto, encontramos o relato sobre o dano à imagem que a obra causou:
Em determinado trecho do livro, o autor, tece sérias denúncias a atuação do ministério de capelania evangélica, muito particularmente a determinada capelã, que mesmo retratada de forma caricata, quem quer que um dia a tenha conhecido, sabe tratar-se da irmã Eleny Vassão de Paula Aitken. Isto, obviamente, tem causado profundo constrangimento e transtorno ao ministério da irmã e de sua equipe, junto à Capelania Hospitalar do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e Instituto de Infectologia Dr. Emílio Ribas (IIER), pois, pastores e líderes, ao tomarem ciência das denúncias do livro, têm proibido seus liderados de fazerem os cursos de capelania e de apoiarem tal ministério.
Há 18 meses este assunto vem sendo abordado no meio evangélico e, na maior parte dos casos, tratado com muito cuidado - tendo em vista a gravidade das denúncias contra ministérios que constituem a Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo - para que danos ainda maiores não fossem causados a esta
Dois pastores de igrejas que teriam sido “infiltradas” na época em que Mastral supostamente era satanista participaram do manifesto. O pastor Marcus de Prosdocimi verificou que as menções do autor à Igreja Batista de Perdizes, em São Paulo, nem sempre são verídicas, após cruzar dados e datas com os registros da igreja. Além disso, o Pr. Ary Velloso observou que as alusões à Igreja Batista do Morumbi são, em grande parte, imprecisas, percebendo no autor uma predisposição maldosa.
Vale notar que, enquanto para algumas pessoas isso depunha contra o livro, para a mente de um conspiracionista isso poderia acabar sendo um validador da obra, justamente pela mistura de ficção com realidade.
Nos comentários sobre o manifesto, ainda disponível no Web Archive (links abaixo), algumas pessoas apontam a mistura que Mastral fazia entre fatos e ficção, inserindo eventos reais, mas alterando épocas e situações, e submetendo tudo à camada ficcional de uma Irmandade Satânica que supostamente atuava nos bastidores:
Manifesto da AEVB em prol da Capelania Evangélica Hospitalar do HCFMUSP e IIER
Sobre os resultados do manifesto, Mariel Marra, afirmou em sua resenha sobre as obras de Mastral:
Este manifesto infelizmente não teve êxito na época, pois a editora de Daniel Mastral alegou que o mesmo não citava nomes, e, por isso, o autor não poderia ser responsabilizado pelo que estava acontecendo com o ministério da capelã Eleny.
Mastral seguiu com seus seminários nas igrejas brasileiras sem provar ou se retratar.
Mariel Marra e o Orkut: A mãe e a ex-noiva de Mastral (2006-2009)
Depois das correntes de e-mail nos anos anteriores, a internet brasileira foi apresentada ao Orkut, onde os livros de Mastral eram discutidos em comunidades criadas por Mariel Marra, que, na época, era estudante de teologia. Após questionamentos teológicos sobre os livros, Marra alegou que Mastral hackeou e tentou roubar suas comunidades. Isso levou Marra a investigar a história dos livros de Mastral e a dar voz a outras vítimas das obras. Todas as afirmações de Mariel estão no mesmo documento: resenha sobre as obras de Mastral.
"Camila", noiva de Mastral na época dos eventos reais que serviram de base para o livro, procurou Mariel Marra depois de descobrir que ele investigava a história de Mastral. Ela revelou os exageros e mentiras do livro, que estavam misturados com poucas verdades. Por exemplo, os grandes cargos que Mastral dizia ter tido em bancos, supostamente por causa de seu envolvimento com o satanismo, não passavam de funções de auxiliar administrativo. O mais importante, segundo ela, é que, ao contrário do que o livro afirmava, a mãe de Mastral não havia tido um caso com um poderoso satanista, e Mastral era filho legítimo de seu pai, assim como seu irmão:
Mariel relatou:
Sobre "Camila", é preciso dizer que eu, juntamente com mais duas pessoas, a conhecemos pessoalmente em julho de 2009, no Anhangabaú, em São Paulo. Segundo o que ela publicou no Orkut e também nos relatou pessoalmente, Mastral é filho do mesmo pai que seus outros irmãos, o sr. Laércio Bastos Ferreira, falecido desde 1995.
"Camila", que ainda possui contato com a mãe de Mastral, nos disse que, de acordo com a própria mãe dele, é um completo absurdo a atitude do filho em publicar um livro dizendo que ela adulterou no passado, muito menos com um satanista.
De acordo com "Camila", a mãe de Mastral não entende por que o filho está fazendo isso com ela. Lamentavelmente, desde a publicação desses livros, ela deixou a igreja e sofre muito com essa injustiça e humilhação.
Desse modo, presume-se ser inverídica a afirmação de Mastral sobre sua paternidade advir de um suposto satanista na política, que no livro ganha o pseudônimo de "Marlon".
Conversamos também com o Pr. Ary Veloso, que era pastor titular na época em que "Camila" e Mastral se relacionavam e frequentavam a Igreja Batista do Morumbi.
Em resumo, além de envolver igrejas, ministérios e líderes religiosos com o satanismo, Mastral gerou constrangimento para seus próprios familiares e pessoas de seu passado. No entanto, a situação ainda se intensificaria, chegando ao ponto de envolver alguém que seria um futuro presidente da república.
Eleições 2010: Michel Temer e o personagem “Marlon” (2009-2010)
Michel Temer ainda não era presidente, nem a figura central no impeachment de Dilma; ele era apenas um deputado e possível candidato a vice-presidente quando começou a ser associado a um personagem do livro de Daniel Mastral. Entre 2009 e 2010, algumas correntes de e-mail começaram a circular. O e-mail ainda falava de uma suposta ameaça que Neuza Itioka, líder de Mastral na época, teria sofrido da parte de Temer. Até hoje, ainda tenho essas mensagens na minha caixa de e-mails:
Para quem leu o livro, sabe que provavelmente não foi por acaso que os leitores fizeram essa associação. Michel Temer nasceu em 23 de setembro, uma data que Mastral afirmava ser uma das festas da “Irmandade”. Além disso, o número de campanha de Temer muitas vezes incluía o número 9, que, segundo Mastral, era um número chave no satanismo. Todos esses detalhes, dentro da mitologia criada por Mastral, seriam indícios de que o deputado seria satanista.
Para completar, Michel Temer era presidente da Câmara dos Deputados no período em que Mastral escreveu e publicou os livros, entre 1997 e 1999.
A situação não parou por aí. Como o personagem Marlon, supostamente o pai ilegítimo de Mastral, era retratado como um dos satanistas destinados a se tornar líder mundial junto com o Anticristo, o alvoroço em torno da candidatura de Temer no meio evangélico foi tão grande que o candidato se viu obrigado a responder sobre o caso em algumas entrevistas.
Em entrevista a revista Rolling Stone Brasil em 2009, Temer citou a lenda:
Há sites evangélicos que afirmam que o senhor é satanista. Tem conhecimento disso?
Sim, tenho conhecimento. Falei com vários evangélicos. Eles acham uma loucura. Na internet dizem que sou filho de Satã, que me filiei a uma corrente satanista. Deve ser coisa de algum inimigo meu.
Assim como fez com os outros acusados de satanismo, Mastral nunca negou nem confirmou que o personagem Marlon seria Michel Temer. Ele preferiu manter a aura de mistério que atraía os conspiracionistas para sua literatura.
O mesmo aconteceu sobre as pessoas ligadas a Mastral na época, segundo Mariel Marra:
A autoria deste e-mail e seu conteúdo foram negados pelo Ministério Ágape Reconciliação, que, em nota divulgada em seu site oficial no dia 19/08/2010, afirmou se tratar de um boato que usava indevidamente o nome da Dra. Neuza Itioka. Contudo, de forma confusa e totalmente contraditória, o mesmo ministério, na pessoa de sua líder, Neuza Itioka, divulgou posteriormente outra nota no dia 27/10/2010, quatro dias antes das eleições de segundo turno, declarando seu apoio ao presidenciável José Serra (PSDB). Nessa nota, ela afirmou que o vice-candidato à presidência da república (Michel Temer), na chapa de Dilma Rousseff (PT), estava tentando enganar as pessoas ao negar seu vínculo com o satanismo. Sabe-se que Neuza Itioka e Daniel Mastral mantêm, desde 1998, uma relação de afinidade, uma vez que foi ela quem o apresentou como ex-satanista de uma poderosíssima organização satânica.
Segundo Marra, Mastral gostava de afirmar em entrevistas que não era filho de Collor, sem mencionar Temer, deixando um clima de mistério para que os ouvintes deduzissem por conta própria que, sim, Temer era satanista e seu pai.
Os rumores sobre a ligação de Temer com o satanismo não foram suficientes para mudar o rumo das eleições de 2010, nem para impedir o impeachment de Dilma em 2016, mas permaneceram na internet, mostrando o tamanho da influência de Mastral no imaginário evangélico dos anos 2000.
Video de Temer cita o livro Filho do Fogo:
As novas bruxas de Salém do meio evangélico nos anos 2000
Em 1692, na vila de Salem, na colônia de Massachusetts, Estados Unidos, uma série de julgamentos e execuções de pessoas acusadas de bruxaria gerou um episódio de pânico moral. Esse período ficou conhecido como os Julgamentos das Bruxas de Salem.
O evento foi desencadeado por algumas jovens que apresentaram comportamentos estranhos, levando as autoridades, influenciadas pelo medo e pela superstição, a acreditar que se tratava de bruxaria. Como resultado, mais de 200 pessoas foram acusadas, 20 executadas, e muitas outras sofreram punições severas.
Os Julgamentos das Bruxas de Salem são um claro exemplo de histeria coletiva, intolerância religiosa e abuso de poder judicial.
Em uma versão bem mais leve desse fenômeno, Mastral espalhou pânico moral com suas histórias sobre satanistas. Eu mesmo presenciei igrejas com medo de satanistas infiltrados, pastores nos púlpitos trocando olhares com os fiéis, deixando claro que não aceitariam satanistas em suas congregações. Houve até pessoas com medo de se internarem em hospitais, temendo que satanistas infiltrados procurassem uma brecha para matá-las. Esse foi o nível de pânico gerado por Mastral e seus colaboradores.
AS MAIORES VÍTIMAS DE “FILHO DO FOGO” NÃO FORAM AS SUPOSTAS PESSOAS MORTAS EM SACRIFÍCIOS HUMANOS OU ATACADAS POR FEITIÇOS DA “IRMANDADE SATÂNICA”, MAS SIM AQUELAS QUE FORAM FALSAMENTE ACUSADAS E TIVERAM SUA IMAGEM DESTRUÍDA, OU QUE ADOECERAM PSICOLOGICAMENTE DEVIDO À PARANOIA GERADA PELOS LIVROS E TESTEMUNHOS DE MASTRAL.
A história continua…
Esse mesmo período da candidatura de Temer coincide com o desligamento de Mastral do ministério de Neuza Itioka e da igreja evangélica brasileira mais "formal", o que resultou em uma transformação na atuação de Mastral, que passou de participante de um ministério de batalha espiritual para algo que se assemelha muito a um líder de culto, como veremos no próximo post.