13. A Origem do “Inferno” - Parte 4 - Depois das Escrituras - Do Tempo para o Espaço
Como surgiu o conceito de “Inferno” na teologia cristã.
Como vimos no último post, o Novo Testamento preserva duas idéias de pós-vida:
Visão mais judaica: Ressurreição dos Mortos para os justos e uma Geena/Gehinnom de destruição e/ou punição temporária para os injustos.
Visão mais helenística: um local de honra (Seio de Abraão), parecido com o Campos Elísios, e um “Hades”, local de punição e tortura, parecido com o Tártaro.
Desse ponto, vamos ver como a visão do cristianismo primitivo evoluiu para o conceito de “Inferno” atual.
A resistência helenística contra a idéia de Ressurreição e a proposta de uma Ressurreição “Espiritual”
A primeira resistência dos cristãos de origem helenística ao conceito de ressurreição se encontra na própria Bíblia, Paulo tem que explicar para os cristãos de Corinto a importância e centralidade da crença para a fé cristã:
Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé. E assim somos também considerados como falsas testemunhas de Deus, pois testificamos de Deus, que ressuscitou a Cristo, ao qual, porém, não ressuscitou, se, na verdade, os mortos não ressuscitam. - 1 Coríntios 15:12-15
Esse texto é o primeiro testemunho de como os gregos estranhavam essa idéia, mas não é o único.
Décadas depois, a mensagem do evangelho avançava e a ressurreição era um elemento de escárnio entre os pagãos, como analisa Ehrman:
A doutrina cristã da ressurreição era frequentemente considerada ridícula por parte daqueles fora da fé, que achavam difícil acreditar que alguém pudesse seriamente pensar que a vida eterna seria vivida no corpo, de todas as coisas. Para muitos antigos (pense em Platão), o corpo é precisamente o problema, a fonte de tanta dor e miséria.
A visão de Celso, respondido por Origines, mostra como os gregos achavam ridícula a idéia da ressurreição:
É tolice [dos cristãos] supor que, quando Deus aplicar o fogo (como um cozinheiro!), o restante da humanidade será completamente assado e que eles sozinhos sobreviverão, não apenas os que estão vivos na época, mas também os mortos há muito tempo, que se levantarão da terra possuindo os mesmos corpos de antes. Isso é simplesmente a esperança dos vermes. Pois que tipo de alma humana teria qualquer desejo de um corpo que apodreceu?
O fato de que essa doutrina não é compartilhada por alguns de vocês [judeus] e por alguns cristãos mostra sua completa repulsividade, e que é ao mesmo tempo revoltante e impossível. - Contra Celso 5, 14
Em um cenário de extrema rejeição da idéia, não é difícil imaginar que propostas concorrentes dentro do próprio cristianismo poderiam ganhar mais espaço.
Portanto, a idéia de imortalidade das almas do Platonismo concorria com a idéia cristã de ressurreição. Em determinado momento, as duas foram sintetizadas na idéia da ressurreição espiritual.
Como Ehrman explica, alguns escritos mais recentes do Novo Testamento, como Colossenses, Efésios e o Evangelho de João, mostram a idéia de uma ressurreição no fim dos tempos misturada com a idéia de uma alma desencarnada imediatamente após a morte. Veja como as duas idéias aparecem no evangelho:
Local de descanso logo após a morte, como o Paraíso de Lucas 23:
Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também. - João 14:2-3
Ressurreição corporal do último dia:
E a vontade do Pai que me enviou é esta: Que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último dia. Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: Que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. - João 6:39-40
Ehrman analisa, como anos mais tarde, um tratado gnóstico sobre a ressurreição, a Carta a Régino, vai girar a chave e praticamente decretar fim a idéia de ressurreição corpórea:
Embora esses escritos canônicos abracem a ideia de algum tipo de ressurreição espiritual dos crentes no presente, eles também continuam a sustentar a ideia de que, no fim dos tempos, haverá um "novo" evento, uma ressurreição do corpo.
Não é o caso da Carta a Régino. Não haverá ressurreição corporal. Apenas a parte viva da pessoa ressuscita. E isso acontece imediatamente na morte. A vida eterna está no espírito, não no corpo.
Uma ironia histórica é que, embora essa visão tenha sido amplamente denunciada pelos cristãos ortodoxos como absoluta heresia, parece ser a visão amplamente mantida pelos cristãos hoje. Você morre e seu espírito vai para o céu. Muitos cristãos, certamente, confessam o credo que afirma a futura "ressurreição dos mortos", mas nem todos o fazem. Para milhões de crentes, o que importa é o que acontece na morte, quando uma pessoa vai para o céu ou para o inferno. Isso não acontecia com muitos dos primeiros pais da igreja, opositores ferrenhos de tais visões como as encontradas na Carta a Régino.
E se a alma é eterna (como em Platão) e ressuscita espiritualmente, o que aconteceria com a alma dos injustos antes da ressurreição corporal? Simples: iria para um local de punição como o dos gregos.
Estado intermediário: Tertuliano e o Hades dos gregos
Lembra como vimos que a mitologia grega separava o mundo dos mortos em três regiões? Veja agora a visão de Tertuliano, um dos pais da Igreja, sobre como seria o mundo dos mortos:
Na visão de Tertuliano, na morte a alma se separa do corpo, e diferentes almas vão para lugares diferentes. Somente as almas dos mártires cristãos, mortos por sua fé, vão imediata e diretamente para o paraíso.
Todas as outras almas, sejam boas ou más, vão para o Hades, um espaço real, enorme, localizado dentro da terra. Hades tem duas divisões, uma para as almas justas que recebem recompensas temporárias e outra para os ímpios que são punidos, tudo em antecipação aos destinos permanentes que virão na ressurreição dos mortos. - Bart Ehrman
Resumindo:
A visão dos pagãos gregos:
Campos Elísios: paraíso reservado a quem realizou atos heróicos.
Campos Asfódelos: para quem não tinha sido mau nem bom.
Tártaro: para quem tinha sido extremamente mau.
A visão do cristão Tertuliano:
Paraíso: para os mártires cristãos que haviam morrido pela fé.
Hades dos justos: onde as almas justas recebem recompensas até o dia da ressurreição.
Hades dos injustos: onde os ímpios são punidos até o dia da ressurreição.
Qualquer semelhança com a parábola de Lázaro e o homem rico não é coincidência, tanto Tertuliano como o autor de Lucas são herdeiros desse conceito grego.
Resquício Aniquilacionalista na Patrística
Até a doutrina atual do Inferno alcançar sua forma final em Agostinho, a maioria dos autores da patrística já acreditavam em um local de tortura eterna, mas, mesmo nesses autores, vemos resquício do conceito de aniquilação, o mesmo presente nos sinópticos (geena) e no Apocalipse (Lago de Fogo).
Veja um trecho de “Contra as nações” de Arnóbio de Sica (330 D.C.):
Pois, embora o homem (Platão) gentil e bondoso achasse uma crueldade desumana condenar almas à morte, ele supôs não sem razão que elas são lançadas em rios ardentes com massas de chamas e repugnantes de seus abismos fétidos. Pois elas são lançadas e, sendo aniquiladas, desaparecem em vão em uma destruição eterna. Pois seu estado é intermediário, como foi aprendido dos ensinamentos de Cristo; e elas são tais que podem, por um lado, perecer se não conhecerem a Deus, e, por outro lado, serem libertadas da morte se tiverem prestado atenção às Suas ameaças e favores oferecidos. E para tornar manifesto o que é desconhecido, esta é a verdadeira morte do homem, esta que não deixa nada para trás. Pois o que é visto pelos olhos é apenas uma separação da alma do corpo, não o fim último — a aniquilação: isso, digo eu, é a verdadeira morte do homem, quando almas que não conhecem a Deus serão consumidas em tormento prolongado com fogo ardente, no qual certos seres ferozmente cruéis as lançarão, que eram desconhecidos antes de Cristo e revelados apenas por Sua sabedoria.
“A verdadeira morte do homem” seria aniquilação, compare com o ensino de Jesus sobre a Geena:
“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no geena a alma e o corpo” – Mateus 10:28
Ou seja, Arnóbio ensinava a doutrina que existia antes da doutrina do Inferno, a doutrina ensinada por Jesus.
A origem helenística da idéia de inferno na Patrística
De Inácio de Antioquia e Cipriano de Cartago até Agostinho, todos já defendem a idéia de Inferno que temos hoje, sobre esse fato, Bart Ehrman comenta:
Mesmo assim, é interessante que a punição após a morte não faça parte das antigas Escrituras Judaicas, o Antigo Testamento cristão.
Existem, no entanto, indícios disso em Homero, como vimos, e isso se torna um elemento fundamental da tradição grega clássica, desde Aristófanes e Platão.
Após seus dias, a cultura helenística (ou seja, "grega") se espalhou por todo o Mediterrâneo com as conquistas de Alexandre, o Grande, e muitos povos, incluindo os judeus, adotaram as visões de seus conquistadores sobre muitas coisas, incluindo as visões do pós-vida. Essas influenciaram desenvolvimentos posteriores no cristianismo. Em muitos aspectos, o inferno cristão é helenístico.
Qual o motivo da mudança? Do Tempo para o Espaço
É importante observar que a visão mais judaica se estrutura no tempo, ou seja, apenas no futuro os punidos seriam destruídos na Geena e os recompensados ressuscitariam. Não acontece de forma imediata.
Já a visão mais helenística acontece no espaço, ou seja, há um lugar, no presente (“hoje mesmo estarás comigo no Paraíso”), de recompensa (“Céu” ou “Seio de Abraão”) separado de um lugar de punição (“Hades” ou “Inferno”)
Com o passar do tempo, o cristianismo primitivo foi deixando de ser uma religião apocalíptica, que via sempre uma redenção e punição dos injustos no futuro, para ser uma religião menos apocalíptica, que coloca a justiça no pós-vida para um período imediato.
As causas da “desapocaliptização” do cristianismo primitivo
O próprio Novo Testamento guarda o principal motivo para o cristianismo ter se desapocaliptizado:
Sabendo primeiro isto, que nos últimos dias virão escarnecedores, andando segundo as suas próprias concupiscências, E dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? porque desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. Eles voluntariamente ignoram isto, que pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste. Pelas quais coisas pereceu o mundo de então, coberto com as águas do dilúvio, Mas os céus e a terra que agora existem pela mesma palavra se reservam como tesouro, e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios. Mas, amados, não ignoreis uma coisa, que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é longânimo para conosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se. Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite; no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra, e as obras que nela há, se queimarão. Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que pessoas vos convém ser em santo trato, e piedade, Aguardando, e apressando-vos para a vinda do dia de Deus, em que os céus, em fogo se desfarão, e os elementos, ardendo, se fundirão? Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça. - 2 Pedro 3
As duas epistolas atribuídas a Pedro são epístolas extremamente apocalípticas, tendo até influências do livro de Enoque, a segunda trata de forma direta o principal motivo do cristianismo ter se “desapocaliptizado”: a demora da volta de Jesus, que os primeiros cristãos acreditavam que ocorreria naquela geração.
Além da questão da demora, vemos o apocalipticismo judaico criando muitos problemas políticos com rebeliões e guerras que acabaram na destruição do templo e no início da diáspora. Essa tendência de desapocaliptizar também aconteceu no judaísmo, onde o livro de Daniel, altamente apocalíptico, passou a ser considerado um mero escrito.
E o que a tem ver a desapocaliptização tem a ver com o inferno?
Quando se perde a esperança de uma redenção no futuro, essa redenção se torna imediata, como também se torna imediata a punição. A visão de um local de tormentos, como o Tártaro grego, vira a solução para a necessidade de um castigo imediato, em outro lugar, outra dimensão, mas imediata a morte.
Quando o cristianismo se reapocalipsizou: os Milleritas e a volta do aniquilacionismo
William Miller, um pregador apocalíptico do século XIX, criou um movimento que voltou a dar ênfase no cumprimento literal das profecias, de seu movimento surgiram os Adventistas do Sétimo Dia, Estudantes da Bíblia, Cristadelfianos, Testemunhas de Jeová e várias igrejas Cristãs Adventistas. Miller, e os vários ramos do seu movimento, fizeram diversas profecias sobre o retorno de Jesus e, claro, nenhuma delas se cumpriu, mas todos esse movimentos ressignificaram essas proferias e continuam até os dias de hoje.
As denominações Milleritas passaram a questionar a doutrina do inferno e abraçar a idéia do chamado “Aniquilacionismo”, a ideia de que não existe Inferno, mas uma destruição dos injustos. Eu acho que não é coincidência o fato da restauração do aspecto apocalíptico do cristianismo estar acompanhado do questionamento da existência do Inferno. É o caminho oposto: um cristianismo que volta a ser apocalíptico, joga as expectativas de punição e recompensa para o futuro e pode estar livre para questionar o conceito de inferno, deixar as formas de punição e recompensa na linha do tempo, não do espaço, como fazia o cristianismo mais primitivo.
Concluindo
Sheol do Antigo Testamento não é Inferno, apesar de ser traduzido assim, é literalmente sepultura, um símbolo do estado de inação durante a morte.
Ge Hinnom do Antigo Testamento não é inferno, nem eterno, é um acontecimento de punição com o fogo.
O Hades da mitologia grega, em especial o Tártaro, é o local mais parecido com a descrição de Inferno do cristianismo atual.
O fato de a Septuaginta ter traduzido Sheol como Hades fez com que os conceitos se unissem em um judaísmo mais helenístico, que foi altamente influente no cristianismo primitivo.
Jesus (do mesmo modo que os fariseus) pregava a Ressurreição dos Mortos no último dia e o Ge Hinnom/Geena de punição temporária e/ou destruição (Aniquilação). O livro de Apocalipse também mostra uma idéia de aniquilação dos perversos no Lago de Fogo, onde a própria Morte e Hades são lançados.
O judaísmo helenístico legou ao cristianismo o conceito de Hades e Tártaro que aparecerem na parábola de Lucas e nas cartas de Pedro, essas idéias não são de Jesus e Pedro históricos, são atribuições posteriores do cristianismo.
O crescimento do cristianismo entre os gregos fez com que a idéia de ressurreição corporal fosse preterida a uma idéia de ressurreição corporal e, aos poucos, o cristianismo passou do conceito de Ressurreição e Geena (Aniquilação) para o conceito de Céu e Inferno (tortura eterna).
A desapocaliptização do cristianismo foi outro fator que contribuiu para essa mudança. Punição e recompensa saíram da dimensão do tempo, acontecimentos no futuro, para a dimensão do espaço, algo que acontece já hoje, mas em outro lugar.
Ehrman conclui:
Essas visões do pós-vida passaram a ser refinadas e aceitas como ortodoxas por escritores dos séculos III e IV do cristianismo, embora diferissem de qualquer coisa encontrada nos ensinamentos de Jesus, Paulo ou Apocalipse. Mas elas não eram inevitáveis. Outros cristãos tinham visões diferentes, e não havia necessidade histórica, cultural ou religiosa de que as visões anteriores de aniquilação final para os pecadores tivessem que levar à noção de tormento consciente sem fim. No entanto, foi isso que aconteceu.
Minha opinião: se o cristianismo é a religião de Jesus, nós, cristãos, deveríamos crer na Ressurreição e Geena (punição seguida de aniquilação) e não nesse presente dos gregos que é o Inferno. Melhor deixarmos o Inferno com o Tom e o Jerry.
Esse estudo é de 2010, foi atualizado e corrigido com base no livro Heaven and Hell: A History of the Afterlife de 2020, todas as citações ao Bart Ehrman durante a série foram tiradas desse livro.