12. A Origem do “Inferno” - Parte 3 - Novo Testamento: Geena, Hades e Tártaro
Como surgiu o conceito de “Inferno” na teologia cristã.
Novo Testamento (30 D.C. – 120 A.C.)
Chegamos ao Novo Testamento.
Não vou relembrar os ensinamentos e o impacto de Jesus em seu tempo, porque acredito que é de conhecimento de todos. Só é importante registrar que usarei a teoria da Fonte Q e da precedência de Marcos para entender a composição dos Evangelhos. Ou seja, acredito que o Evangelho de Lucas e Mateus foram escritos com base no Evangelho de Marcos e um conjunto de ditos e falas em aramaico que os eruditos chamam de Fonte Q ou Documento Q. Entendo também que Mateus escreveu para um público mais judaico e Lucas para um público mais gentio.
Primeiro, vamos ver o significado das duas principais palavras traduzidas como “Inferno” no Novo Testamento: Geena e Hades; e depois entender as outras expressões associadas ao Inferno.
Geena
Geena é o termo em grego equivalente ao Ge Hinnom, o Vale do Filho de Hinnom que vimos no Antigo Testamento e na formulação dos fariseus. Note que Jesus se refere ao lugar em um contexto escatológico, e os autores dos Evangelhos deixam claro que ele está fazendo referências a Isaias e Jeremias.
O termo “Geena” é comum em Mateus e Marcos, raro em Lucas e ausente em João. Em Mateus e Marcos, evangelhos mais judaicos, o Ge Hinnom aparece várias vezes como lugar de punição, onde os injustos serão lançados. Marcos sempre diz que é melhor perder um membro do que o corpo inteiro na Geena. Uma diferença significativa: algumas cópias de Marcos incluem o versículo de Isaías sobre como o verme não morre e o fogo não se apaga.
“Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do geena.” – Mateus 5:22
“Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no geena.”. – Mateus 5:29-30
“E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do geena” – Mateus 18:9
“E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o geena, para o fogo que nunca se apaga, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:43 - 44
“E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no geena, no fogo que nunca se apaga, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:45-46
“E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do geena, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:47-48
Jesus também condena os fariseus ao Ge Hinnom/Geena
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do geena duas vezes mais do que vós.” – Mateus 23:15
“Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do geena?” – Mateus 23:33
Lucas, como dito, é um Evangelho mais grego do que judaico, é possível notar na linguagem e no foco da mensagem. A palavra Geena, conceito judaico, aparece uma única vez em Lucas, e é possível reparar que o mesmo versículo é diferente em Mateus.
No Evangelho de Mateus, o corpo e a alma são lançados na Geena, mas no Evangelho de Lucas, o corpo é morto e, apenas depois de morto, a alma é lançada na Geena. Pode parecer uma pequena diferença na forma da linguagem, mas analisarmos o conjunto vemos que é uma diferença real na teologia dos autores. Veremos mais adiante como isso é significativo.
“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no geena a alma e o corpo” – Mateus 10:28
“Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no geena; sim, vos digo, a esse temei.” – Lucas 12:5
Um livro extremamente judaico do novo testamento, a epistola de Tiago (repare que na apresentação ela é direcionada as 12 tribos Israel) é o único livro do Novo Testamento além dos evangelhos que usa o termo Geena.
“A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a língua está posta entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo geena.” – Tiago 3:6
Hades
Como vimos, a Septuaginta usava a palavra Hades como tradução da palavra hebraica Sheol. A maioria das vezes que a palavra Hades aparece no Novo Testamento (escrito em grego) faz referência ao Sheol hebraico. Vamos ver todas as aparições do Hades, primeiro as mais fáceis e depois as mais complicadas.
Nesses trechos abaixo, Jesus não está citando o Hades como um Inferno físico, ele está fazendo uma paralelo entre altura e abismo, entre glória e vergonha, da mesma forma que esse paralelo apareceu várias vezes com o Sheol do Antigo Testamento. Como já dito, é um traço da poesia judaica, conceitos opostos apresentados em paralelo.
“E tu, Cafarnaum, que te ergues até aos céus, serás abatida até aos hades; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje.” – Mateus 11:23
“E tu, Cafarnaum, que te levantaste até ao céu, até ao hades serás abatida.” – Lucas 10:15
Nos quatro versículos em que o Hades aparece no Apocalipse, sempre aparece paralelo a Morte. O livro da Revelação inteiro é cheio de referência aos livros proféticos do Antigo Testamento (alguns exemplos Apocalipse 11 e Zacarias 4; Apocalipse 18 e Isaias em varias trechos; Apocalipse 13 e Daniel 7) e uma das referências é o paralelo sinônimo da morte e o Sheol.
“E o que vivo e fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre. Amém. E tenho as chaves da morte e do hades.” – Apocalipse 1:18
“E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o hades o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.” – Apocalipse 6:8
“E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o hades deram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras. E a morte e o hades foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte.” – Apocalipse 20:13-14
Algumas vezes, Hades, aparece em citações ao Antigo Testamento, como equivalente ao Sheol.
“Pois não deixarás a minha alma no sheol, nem permitirás que o teu santo veja corrupção.” – Salmo 16:10
“Pois não deixarás a minha alma no hades, Nem permitirás que o teu Santo veja a corrupção;” – Atos 2:27
“Nesta previsão, disse da ressurreição de Cristo, que a sua alma não foi deixada no hades, nem a sua carne viu a corrupção.” – Atos 2:31
“Eu os remirei da mão do sheol, e os resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as tuas pragas? Onde está, ó sheol, a tua perdição? O arrependimento está escondido de meus olhos.” – Oseias 13:14
“Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó hades, a tua vitória?” – 1 Coríntios 15:55
As duas mais interessantes e importantes passagens do Hades no Novo testamento são a da parábola de Lázaro em Lucas, e a da Cesaréia de Felipe em Mateus.
“E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” – Mateus 16:13
A Cesaréia de Felipe era uma cidade helenística dentro do território de Israel. Uma das interpretações propostas para esse trecho é a de que era comum a adoração ao deus Pan, o deus-bode dos gregos, e em uma montanha havia uma caverna conhecida como “Porta de Hades”. Pan e outros deuses usariam a porta pra entrar e sair do Hades.
“Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do hades não prevalecerão contra ela;” – Mateus 16:18
Então, quando Jesus fala sobre as portas do Hades, e não do “Inferno”, está falando que o paganismo não prevalecerá contra a Igreja. Pensamento um pouco diferente do que nossa tradução interpretada do trecho acabou gerando através dos anos.
Suposta portas do Hades:
Hades na parábola de Lazaro.
Essa é a passagem bíblica mais próxima do “Inferno de Tom & Jerry”. Alguns entendem como história e outros como parábola. Vamos ler o trecho e tentar entender os motivos das duas interpretações.
“Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele; E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas. E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio. E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é consolado e tu atormentado. E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá. E disse ele: Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai Pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, pai Abraão; mas, se algum dentre os mortos fosse ter com eles, arrepender-se-iam. Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite.” – Lucas 16:19-31
Os que acreditam que a parábola é literal usam os seguintes argumentos:
Jesus não diz que a história é um parábola. Em muitas outras vezes nos Evangelhos ele sinaliza que irá contar uma parábola.
Jesus atribuiu nome a um dos personagens, portanto a historia não é uma parábola, já que normalmente não atribuía. Lazaro é o mesmo nome do homem que ele ressuscitou no Evangelho de Joao (Cp. 11-12), sendo essa história um possível testemunho do próprio Lazaro.
Alguns também acreditam que independente da historia ser literal ou não, se o Hades e o Seio de Abraão fossem lendas, Jesus não reforçaria essas lendas usando-as em uma parábola.
Mas eu penso diferente. Mesmo não anunciando que o trecho é uma metáfora, Jesus conta essa historia logo após contar a parábola do mordomo infiel, e é comum nos evangelhos uma série de parábolas contadas em seguida.
A reação dos fariseus, em relação a parábola do mordomo infiel, foi que levou Jesus a contar a parábola de Lázaro.
Um dos religiosos mais poderosos da época era Caifás, o Sumo Sacerdote. O homem rico da parábola de Lazaro parece ser uma referência a ele. As roupas do rico eram parecidas com as vestimentas do Sumo Sacerdote em Êxodo 28, feitas com purpura e linho fino.
Não seria a primeira vez em que uma autoridade judaica aparecia de forma negativa em parábolas do Evangelho de Lucas. Na parábola do Bom Samaritano um levita e um sacerdote negam socorro ao homem (10:25-37). Algo que colabora para está interpretação.
Independente de ser ou não uma parábola, essa ideia do inferno de um lado e o paraíso do outro, veio dos gregos e não dos judeus. Então se são ideias verdadeiras, Deus revelou antes para Homero e Hesíodo e não revelou para Isaias e Jeremias. Essa idéia é a defendida na parábola de Lucas.
O Hades de Lucas versus a Geena de Jesus (Marcos e Mateus)
A visão helenizada de Lucas
A visão de pós-vida e mundo espiritual de Lucas é mais helenizada do que a visão de pós-vida de Marcos e Mateus, vamos a alguns exemplos:
No exorcismo do gadareno, em Marcos e Mateus, os demônios pedem para não sairem da província, já em Lucas, pedem para não serem enviados para “o abismo”, dando a entender que haveria uma região ou mundo espiritual onde habitariam os demônios. (Lc 8:26–39, Mc, 5:1–20, Mt 8:28–34)
Na ressurreição da filha de Jairo, Lucas é o único evangelho que descreve o processo como “e seu espírito voltou”, deixando claro a separação entre espírito e corpo na forma como é entendida atualmente. (Lc 8:40–56, Mc 5:21–43, Mt 9:18–26) — conteúdo de Marcos
Como já vimos, ao falar sobre o julgamento de Deus, Jesus alerta a temerem o Senhor que além de matar tem o poder de jogar o homem na geenna. Um ponto raramente percebido: Mateus diz “pode fazer perecer na geena a alma e o corpo”, enquanto Lucas diz “depois de matar, tem poder para lançar na geena”. Isso se explica por uma diferença de entendimento do que seria a geena, Mateus parece interpretar a geena como um lugar de punição física, enquanto Lucas interpreta de forma similar ao hades dos gregos, onde apenas o espírito/alma é lançado. (Lc 12:4–7, Mt 5:28–31). Detalhe, o termo “geena” aparece diversas vezes em Mateus e Marcos, a nessa única vez em que é citado em Lucas, aparece com essa interpretação divergente em relação aos outros evangelhos.
Lucas é o único evangelista a incluir a parábola de Lazaro, onde, após a morte, há uma separação entre o Seio de Abraão e o Hades, ideia similar ao atual conceito de céu e inferno. (Lc 16:19–31). Como vimos, o conceito de Seio de Abraão e Hades, como subdivisões do mundo dos mortos, surge em vertentes helenizadas do judaísmo do segundo templo, em apócrifos e pseudígrafo como 4 Macabeus e Livro de Enoque. A doutrina tem influência do Campos Elísios e Hades/Tártaro da mitologia grega.
Lucas é o único evangelista que incluiu a promessa de Paraíso, ainda no dia da morte, para o bom ladrão. (Lc 23:43)
Ao ser questionado pelo sinédrio se era o Messias, Mateus e Marcos narram Jesus citando Daniel 7:13, em que o Filho do Homem aparece fisicamente nas nuvens do céu, Lucas apenas diz que Jesus citou o Salmo 110, que mostra o Messias sentado ao lado do pai, sem necessariamente ser visto no céu. Lucas ainda diz “Desde agora o Filho do homem se assentará à direita do poder de Deus”, como algo no presente, Mateus e Marcos colocam isso como algo futuro. (Mt 26:57–68, Mc 14:53–65, Lc 22:54–65 22:67–71)
A visão judaica de Jesus em Mateus e Marcos
Como já explicado antes, anos antes de Jesus, tanto para os profetas, quanto para a tradição farisaica lendo esses profetas, o Ge Hinnom era visto como um lugar de massacre dos inimigos de Deus no Juízo Final.
Jesus tinha essa mesma visão: os corpos mortos dos inimigos de Deus serão lançados neste lugar horrível e ímpio, onde serão destruídos, permanentemente separados de Deus e de sua bondade.
Nas palavras de Bart D. Ehrman:
Jesus combina essa noção de Gehenna profanada com outra passagem das Escrituras que fala dos mortos sendo desprezados pelos vivos justos. Este é o versículo final do grande livro de Isaías, no qual Deus diz ao seu povo que, após o julgamento, "eles sairão e olharão os corpos mortos das pessoas que se rebelaram contra mim; porque seu verme não morrerá, seu fogo não se apagará, e eles serão um horror para toda carne" (Isaías 66:24). Esses corpos estão mortos; eles não estão sendo atormentados. Os justos que olham com grande satisfação para esses inimigos destruídos os verão sendo consumidos por vermes e fogo, completamente profanados, sem sepultura, deixados para apodrecer e queimar. Isso nunca será revertido. Para aqueles destruídos por Deus, não haverá salvação - nunca. Da mesma forma, quando Jesus ensina sobre Gehenna, ele está pensando em aniquilação, não em tormento.
Assim, por exemplo, em Mateus 10:28, Jesus diz que as pessoas não devem temer aqueles que "podem matar o corpo, mas não podem matar a alma!" Em outras palavras, elas não devem temer morrer fisicamente. Todos nós morreremos, de uma maneira ou de outra; não devemos temer aqueles que podem fazer isso acontecer mais cedo ou mais tarde. Em vez disso, ele continua, "temam aquele que pode aniquilar tanto a alma quanto o corpo em Gehenna." É importante notar que Jesus aqui não diz apenas que Deus "matará" a alma de uma pessoa: ele a "aniquilará" (ou "exterminará"). Depois disso, ela não existirá.
Isso contrasta com aqueles judeus que esperavam uma futura ressurreição. Para eles, a "alma" ou "sopro" que vivifica seu corpo é retirada na morte. Mas na ressurreição será devolvida, trazendo o corpo de volta à vida. Isso, no entanto, só acontecerá com aqueles cujos corpos morreram, mas cuja força vital é restaurada. Se a força vital também for destruída, não haverá ressurreição no reino vindouro de Deus. Haverá apenas morte. Só Deus pode destruir a força vital. Quando ele faz isso, a pessoa não está apenas fisicamente morta, mas completamente morta - destruída, exterminada da existência.
Pior ainda, esses inimigos de Deus seriam lançados, insepultos, em Gehenna, infame como um lugar de desolação total, um lugar desprezado e abandonado por Deus. Isso era pior do que não ser enterrado - não porque implicava tormento futuro, mas porque excluía qualquer possibilidade de um lugar de descanso, um lugar de paz. Os pecadores terminariam como cadáveres roídos por vermes e queimados pelo fogo. Para eles, nunca mais haveria esperança de vida. [1]
Ou seja, a visão de Bart Ehrman propõe que Jesus teria uma teologia aniquilacionista, semelhante (não idêntica) a dos Testemunhas de Jeová e Adventistas do sétimo dia.
Na minha opinião, é possível que a visão de Jesus tivesse algum traço de uma punição temporária na Geena, pois vemos em Mateus:
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu da Geena. Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.
A Geena podere ser o destino no pecador, sinônimo de prisão, de onde se sai até pagar o último ceitil.
Se compararmos esses versículos com a visão da Geena/Ge Hinnom presente na Mishná, podemos entender que Jesus também entendia a punição como temporária ou proporcional aos crimes:
Ele [Rabbi Akiba] também costumava dizer que há cinco coisas que duram doze meses: O julgamento da geração do dilúvio [continuou] por doze meses; O julgamento de Jó [continuou] por doze meses; O julgamento dos egípcios [continuou] por doze meses; O julgamento de Gog e Magog no futuro [continuará] por doze meses; O julgamento dos ímpios no gehinom [continua] por doze meses, pois está dito, e “será de um mês até o seu [mesmo] mês” (Isaías 66:23). Rabino Yohanan ben Nuri diz: “[Enquanto] desde a Páscoa até Shavuoth, pois é dito: “E de um sábado até o [próximo] sábado” - Mishnah Eduyot 2:10
Conclusão sobre as visões de Lucas versus Mateus e Marcos
Mateus e Marcos preservaram a visão de Jesus, mesma visão da maioria dos judeus de sua época, de que a Geena era um local de destruição e/ou punição temporária, em nada parecida com a doutrina do “Inferno” atual. Lucas já apresenta a visão de um judaísmo mais helenizado sobre o tema, que trás paralelos em crença da mitologia grega e de pseudigrafos como Enoque.
Tártaro, mais um elemento da visão helenística
Outro termo traduzido como Inferno. Já vimos, na parte anterior, que o Tártaro da mitologia grega é um abismo onde os criminosos eram punidos e os deuses rebeldes eram aprisionados. Aparece em um trecho da segunda epistola de Pedro, relacionado a prisão dos anjos.
“Porque, se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no tártaro, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo;” – 2 Pedro 2:4
Essa citação ao Tártaro é uma confirmação da influência helenística, pois ao contrário do termo Hades, Tártaro nem ao menos aparece na Septuaginta, é uma influência direta da mitologia grega nos escritos cristãos.
Lago de Fogo é Aniquilação
E o Lago de Fogo, não seria essa a base da doutrina o Inferno?
Novamente, vou recorrer as palavras de Bart Ehrman que explicou melhor do que eu seria capaz:
Seu julgamento dos mortos – tanto os ímpios quanto os justos – vem na descrição sucinta de Apocalipse 20:11-15. Um “grande trono branco” é estabelecido e todos os mortos, “grandes e pequenos”, são trazidos para se posicionar diante daquele que se senta nele. Ninguém é isento. Livros são abertos, e então um livro solitário. Este último é o livro da vida. Os livros registram as ações de todos que já viveram, e todos “os mortos foram julgados pelas coisas escritas nos livros, de acordo com o que tinham feito” (20:11). Qualquer um cujo nome não esteja escrito no “livro da vida” é condenado e “lançado no lago de fogo”. Além disso, a Morte e o Hades também são lançados no lago. O autor nos diz: “Esta é a segunda morte, o lago de fogo” (20:14).
Mais uma vez, é claro, não faz sentido imaginar que seres vivos conhecidos como “Morte” ou “Hades” sejam literalmente lançados em um lago fervendo com fogo para serem punidos para sempre. Isto descreve a destruição final de tudo o que se opõe a Deus. Deus é o autor da vida. A Morte é seu inimigo, e ela, juntamente com todo o reino dos mortos, será destruída permanentemente. Eles não existirão mais. É por isso que o lago é chamado de “a segunda morte”. É o aniquilamento final de tudo o que está morto. Incluindo todos os humanos que estão mortos. Para eles, não há mais vida, jamais.
Conclusão sobre o Novo Testamento
As duas visões que existiam no judaísmo do segundo templo sobre o pós vida tem espaço no Novo Testamento:
Cristianismo mais judaico: A visão dos fariseus, de Jesus (em Mateus e Marcos), Tiago e do Livro do Apocalipse: a Ressurreição dos Mortos e uma Geena/Gehinnom de destruição e/ou punição temporária para os injustos.
Cristianismo mais helenizado: A visão do judaísmo helenístico, do autor de Lucas e das epístolas de Pedro: um mundo no pós-vida similar ao mundo da mitologia grega, separado em um local de punição, parecido com o Tártaro e um local de honra (Seio de Abraão), parecido com o Campos Elísios.
Essas duas visões se misturavam de alguma maneira nas epístolas atribuídas a Pedro, onde existe uma mistura dos conceitos, como nas tradições Enoquitas.
Na próxima parte, vou analisar a visão de “Inferno” após o Novo Testamento.